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LITERATURA MARANHENSE: A Estética da Criação e a Criação da Estética*

O BLOG DO PAUTAR apresenta, todas as quartas-feiras, textos de escritores maranhenses – projeto LITERATURA MARANHENSE. Essa iniciativa tem como objetivo despertar o interesse pela leitura e, ao mesmo tempo, mostrar a produção literária de nosso Estado. Aproveite... Boa leitura!

(Prefácio ao livro “Sinergia”, de Tasso Assunção)

Tantas são as palavras e abordagens sobre esta obra, que dela me restou a mim apenas sua sobra. Entenda-se por sobra aquele material que não foi ou não pôde ser avaliado, para se determinar algum aspecto – no caso, o processo de criação literária (“writing process”) nos poemas de “Simbiose”, obra de Paulo de Tasso Oliveira Assunção.

“Simbiose” é, na verdade, uma espécie de terceira edição de “Desconexos”, livro lançado em 1986 e com segunda edição em 1998, esta feita quase artesanalmente em computador e de circulação muito restrita, com exemplares personalizados distribuídos, via de regra, para amigos. Para não avolumar ainda mais as anotações, incorremos no acinte de desconsiderar a obra de 1998, atendo-nos à primeira edição e aos textos de 2004.

Tasso Assunção é pessoa exteriormente contida e poeta intrinsecamente incontido. É ele portador daquela “mão que pensa e sente”1, “mão inquieta e incontentável”2, permanentemente insatisfeito com o resultado final (!) do seu próprio texto.

Estudioso da gramática, buscador da concisão e precisão textuais, quase-verdugo de adjetivações e outros “adereços” literários, Tasso Assunção, por cerca de duas décadas, submeteu seu primeiro e único livro publicado a exame clínico e cirurgias estéticas reparadoras. E não estava de brincadeira nesse processo; fez até cirurgia da face: a capa, o rosto da obra mudou, como vimos, rebatizado para “Sinergia”, em lugar do “nome de nascimento” “Desconexos” e do nome “Simbiose”, vigente até a hora das provas finais do livro. (O autor só terminou de “mexer” no livro no fim. No último instante, provas tiradas e notícia estampada em jornal, houve a modificação do título da obra, que nascera “Desconexos”, ganhara um novo nome – “Simbiose” – e terminou como “Sinergia”, certamente um nome, digamos, mais “amplo” e que mais reflete o lógico e o psicológico, o racional e o emocional do autor e sua obra. Todo esse trabalho, toda essa busca, porque Tasso Assunção, moço pensador que é, se sentia incomodado com algo que não estava “batendo” direito, um certo quê de insatisfação ou incompletude em relação ao título do livro.

Os poemas de “Desconexos”, a obra inicial, tornaram-se, então, a massa a ser sovada na padaria intelectual de Tasso Assunção. Os textos viraram, assim, “poemas de laboratório”, por oposição a “poemas eventuales”, na confrontação de Günter Grass3, que nos fala do fazer poético mais trabalhado (e trabalhoso) desses que se tornam verdadeiros “caballeros em el laboratorio de los sueños, los caballeros com los amplios compendios de diccionarios, los caballeros – también pueden ser damas – que de la mañana a la noche trabajan com lengua, com el material del idioma (...)”4. Com adaga, lança e rédea, Tasso também já se antevia ginete do texto. Repare-se o terceto inicial de “Lazer”: “Livro aberto, / dicionário à mão, / sinônimos indefinidos”.

A recauchutagem sígnico-ideológica a que foi submetido o livro de estreia de Tasso Assunção leva à pergunta: Pode um autor refazer/desfazer a obra dada a público? Marguerite Duras, romancista francesa nascida no Vietnã, acha que não. Ela escreveu: “Nada mais pode entrar em um livro assim, terminado e distribuído”.5 Contrariamente, do outro lado, não é só Tasso Assunção que nos diz que sim, a obra publicada pode – dir-se-ia até: deve – ser reescrita, revista e revisada, ampliada, enriquecida, melhorada. Autores brasileiros de envergadura fazem isso – Josué Montello, por exemplo, que reescreve obras inteiras. Autores estrangeiros também atestam que em livros escritos também se mexe: Proust, que morreu em 1922, aos 51 anos, antes de ser vencido pela pneumonia e a asma crônica empregou os últimos meses de sua vida a fazer correções das obras que já estavam em curso de publicação. Outros textos proustianos foram localizados e neles percebeu-se que o autor fizera alterações posteriores, desconsideradas na hora da edição “post mortem” – o que não deixa de ser uma espécie de crime de lesa-intenção, um desrespeito às vontades últimas do escritor.

Surgida na França em 1968 e iniciada no Brasil em 1985, a Crítica Genética está desenvolvendo um amplo e meritório trabalho não só de desvendar e documentar o “writing process” de uma obra e de um autor, como também tem contribuído para reescrever/repor verdades literárias, por meio da colação, a comparação de manuscritos e outros prototextos com textos publicados.

Alguém poderia perguntar qual a utilidade ou “vantagem” de saber as etapas iniciais e intermediárias de um romance, por exemplo, se o que importa mesmo é tê-lo ali, na sua forma final, publicado, prontinho pra ser lido. Ora, quem pergunta isso talvez seja o mesmo tipo de gente que se pergunta pra que gastar tanto tempo, dinheiro e outros recursos com Arqueologia, Paleontologia, Biologia, Química, Astronáutica, Cosmologia, para saber a origem do ser humano, da vida e do Universo, se o que interessaria mesmo é viver – viver apenas, viver a esmo, como ser médio, mediano, senão medíocre, desconhecedor de suas origens e desatento a seus fins e finalidades.

Pois assim é a Crítica Genética: a “ressurreição” do que estava morto, a Arqueologia e Paleontologia de uma dada obra ou de um dado escritor, por meio dos “fósseis gráficos”, nos quais se podem decifrar as formas de vida primevas daquele livro ali, vistoso, capa reluzente, lombada larga, papel de primeira, com tipologia adequada, limpa. Não sabe o leitor as garatujas, os rascunhos e rasuras, os borrões, correções, alterações antecedentes e o que isso representa de silêncio, solidão, suor e sofrimento no autor.

Sim, um texto, um livro se modifica. Sim, escrever não é – na maioria das vezes – um doce ócio, um fluido ofício. É trabalho, é pauleira, é atenção, é briga. É exercício de corte e costura; é coser a roupa no corpo – ajustar a forma à ideia. É como traduzir o que o autor quer dizer. É a busca das melhores palavras e suas justaposições para expressar o turbilhão neuronal de ideias, emoções, sentidos e sentimentos do escritor. Um sufoco. Não é à toa que, para os antigos gregos, o ato de escrever, escrever poesia, era equiparado, por exemplo, ao extenuante trabalho de construir um navio. Por isso, poesia, em grego (“poiésis”), significa “fabricação”. O contrário de poesia era teoria (em grego, “theoría”, “observação”).

Sabendo ou não que estava/está autorizado a, “ab initio”, transformar sua obra em uma “metamorfose ambulante”, Tasso Assunção intuía que isso lhe era natural, o poder dispor de seu livro como bem entendesse, preferencialmente se para melhor – e outro entendimento não parece caber na prática literária tassiana. Alexandre Herculano, poeta e escritor português do século XIX, escreveu: “Eu não me envergonho de corrigir e mudar as minhas opiniões, porque não me envergonho de raciocinar e aprender”.

Perceber e documentar o frenesi da reescrita deste livro só foi possível porque acompanho de perto o trabalho do autor. De alguns autores imperatrizenses tenho guardados manuscritos, originais de textos e de livros inteiros, segundas edições e, até, obras publicadas com ulteriores anotações, alterações, revisões, correções à mão.

Já foi dito: o livro “Desconexos”, hoje redenominado “Sinergia”, é de 1986. Ainda me lembro do autor, naqueles meados da década de 1980, parado em frente ao balcão do banco onde trabalhei, olhando para mim como quem pede permissão para entrar. Autorizado, Tasso Assunção veio até a mim e, meio reticente, falou que acompanhava meu trabalho cultural e jornalístico e me entregou seu livro, com dedicatória tão contida quanto o autor: “Ao Edmilson Sanches – Tasso Assunção.” (Assim mesmo, com travessão e ponto, que Tasso é de escrever escorreito).

Uma olhadela rápida num e noutro texto e pude perceber a consistência de expressão formal e ideológica do autor. No mesmo instante, sabendo-o desempregado, encaminhei-o a um jornal da época, onde desempenhou com honra e competência a função de revisor e copidesque. Meses depois, passamos a trabalhar juntos em publicações e instituições que fundamos ou administramos em Imperatriz.

Conheci, desse modo, muito do processo criador e criativo de Tasso Assunção, das leituras que fez e faz, das longas conversas pessoais e por telefone acerca das coisas que ele escrevia ou pensava ou fazia. Tanto que, ao longo destes quase vinte anos, ele concedeu-me um certo “droit d’ingérence”, um ir além dos sapatos, quando da leitura e/ou revisão de seus trabalhos.

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“Sinergia” tem 31 poemas, dois a menos que a obra antecessora, “Desconexos”. Além de lhe mudar o título e cortar a introdução e dois poemas (“Atualidades” e “O filho da máquina”), Tasso Assunção promoveu mais de duas centenas de intervenções (contei 205) em trinta poesias. Apenas a poesia “Anverso” não recebeu qualquer alteração, seja de uma vírgula ou ponto (os poemas “Sobre o autor”, “Desilusão”, “Autocrítica”, “Rotina”, “Caos”, “Ocaso” e “Ilusões” receberam apenas pontuação e uma ou outra letra maiúscula, além do encurtamento do título de “Ilusões”, antes “Filme de ilusões”).

Mas, em Tasso Assunção, a intervenção de um ponto, uma vírgula, um dois-pontos, um hífen, reticências ou travessão não podem ser vistos como meras pontuações, até porque esses sinais, como os diacríticos, estabelecem relações, digamos, ideológicas, além de facilitar o diálogo entre o imobilismo gráfico, o dinamismo da leitura e a apreensão do sentido.

Logo no poema inicial, “Papel em branco”, Tasso maneja cirurgicamente o afiado bisturi de escritor: o primeiro dístico, que era “Vi no meu espaço / a ilusão de liberdade”, terminou ficando “Vislumbrei em nívea lauda / o prenúncio de liberdade”. Esses dois versos tiveram uma redação intermediária, que não chegou ao conhecimento do leitor: “Vi no meu espaço / o prenúncio de liberdade”. Uma correção anterior, feita à mão pelo autor, incluía uma vírgula após “liberdade”. Assim, para a Crítica Genética, três variantes antecederam a forma atual desse dístico. Nos dois versos seguintes do poema temos: “Espaço para o verbo, / a palavra, a voz, o grito...”. O que estava em “Desconexos” era: “espaço para o poema, / a palavra, a voz, o grito” – com minúscula inicial e sem pontuação ao final, justificada pela conjunção “e” do verso seguinte. O terceiro e último dístico ficou: “E vi o quanto é poética / uma página de silêncio!” Afora o “E” maiúsculo, praticamente nenhuma alteração... porque o leitor não sabe que o autor, intermediariamente, chegou a substituir o adjetivo “poética” por “lírica”, palavra que é, visivelmente, mais restritiva e menos... poética. Ao final desse poema, catorze alterações de percurso ocorreram entre a publicação inicial de 1986 e a forma atual, dezoito anos depois.

Para não cansar o leitor com minúcias e minudências de Crítica Genética, apenas listemos que, no poema “Palavra”, o terceiro verso da terceira estrofe (“A memória tece o elo”) era, antes: “No pensamento acontece o elo”. Nesse poema, corretamente, Tasso Assunção faz o crédito da frase-verso “a palavra não é coisa” ao seu autor, o sábio indiano Jiddu Krishnamurti, falecido em 1986, aos 90 anos.

Em “Autoconsciência”, “reflexos” vira “emanações”. Em “Sangue”, o verso inicial “Um grito de dor” substituiu a “O uivo de um lobo, um urro”. Nesse mesmo poema, o que era “preto” virou “negro”.

O poema “Farsa” era antes “Poeminha veloz” e o primeiro verso do segundo quarteto, agora “jejuns em devoção ao Salvador”, é a reescrita de “jejuns em respeito à morte de Jesus”.

Em “Continuidade”, o segundo verso do segundo dístico (“buscando a evasão”) e o primeiro do terceiro (“agrilhoado ao pensamento”) trocaram de posição, um ficando no lugar do outro, em relação ao livro de 1986.

No poema “À Teresa”, o poeta deixa de ser “talvez esquizofrênico” (edição de 1986) e admite-se “certamente incompreendido” (2004). Também tem outra certeza: deixa de ser “assaz apaixonado” e entrega-se: é “sem dúvida apaixonado”. O amor é lindo.

Em “Fantoches”, o que era “São (somos) levados de roldão / pelos tristes da vida” transformou-se em “Narcotizados por quimeras, / são levados de roldão pelos reveses da vida”. A aliteração “Artificiais, atores, atrozes, atrizes” foi precavidamente alterada, por receio de plágio, para “Artificiais, atônitos, soberbos, servis”..

No poema “Em relevo”, o terceto “Nossos corpos em sincronia, / energias se expandem, se deslocam, / delírio psicobiofisiológico” era anteriormente “Nossas vidas se misturam / energias se entrechocam, se deslocam / delírio fisiológico”.

Como visto, alguns poemas receberam novos títulos. Outro exemplo: o título do poema “Contracultura” era “Anos 80”. “Reminiscências” (que anteriormente se intitulava “Sombras”) teve três verbos “pensar” substituídos por sinônimos ou equivalentes: “aflorar”, “assomar” e “rememorar”. Os versos “recordações tornadas vívidas. / Artificialmente enaltecidas” são a reelaboração de “lembranças tornadas vividas. / Enaltecidas”. (Atente-se para o detalhe: com um simples acento agudo, o que era verbo – “vividas” – passou a adjetivo (“vívidas”) e deu mais leveza e riqueza ao poema). Outras alterações foram processadas nesse poema: onde está “Exatamente” era “Simplesmente” e onde se registra “renitentes” lia-se, antes, “revividas”.

Em “Pressentimento”, esse poema que nos deixa meio-sei-lá-assim-não-sei-o-quê, o verso “algo de infinito, de fundo-profundo” é a versão contracta de “Existe alguma coisa de infinito, de fundo-profundo”.

Por fim, em “Fé”, Tasso Assunção chegou à forma final do último terceto – “Crer ou não crer... / Mas não há ressurrectos, / quer creiam, quer não” – após tentar uma variante para o verso do meio: “Mas a morte sobrevém,”. O verso de 1986 era: “Mas a morte não crer [sic] na ressurreição”.

Como se vê, é longo, quase fastidioso, o processo de aperfeiçoamento de um trabalho literário (assim também na pintura, na arquitetura, na escultura, no cinema etc., com seus estudos, rascunhos, borrões, “storyboards”...). Nos “Meus Verdes Anos”, de José Lins do Rego, os estudiosos registram alterações interessantes: “aqueles estropiços do marido”, expressão que estava no manuscrito, virou “aqueles ‘gritos’ do marido”; a frase “até barão encheu o rabo com a desgraça do povo” transformou-se, no livro, em “até barão encheu o ‘papo’ com a desgraça do povo”.

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Renomeando poemas, reduzindo versos, reestruturando estrofes, encolhendo sílabas, escolhendo palavras, Tasso Assunção vai agregando qualidade aos textos. A contenção é com tensão – e isso não se dá sem que o texto poético “haja sofrido um longo e não raro atormentado processo de gênese e modelagem”, no dizer do paulista Alfredo Bosi6, professor, crítico e historiador da literatura.

Alerte-se que a poesia de Tasso Assunção nem sempre é de fácil apreensão, não é linear. Mais que saber ler, é preciso ler com saber: “Historicamente o conceito de literatura está inextricavelmente envolvido com a presunção de qualidade tanto do texto quanto do leitor”, constata Frank Kermode, no prólogo a seu livro “Um Apetite pela Poesia”7. Por sua vez, bem-humorado e ferino, Georg Christoph Lichtenberg, físico, professor e escritor alemão do século XVIII, escreveu: “O livro é um espelho: se um asno o contempla,
não se pode esperar que reflita um apóstolo”.

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Seria necessário muito tempo e espaço, além de disposição, para, mais que listar prototextos e versos modificados, garimpar e avaliar as razões das modificações. Isto exigiria fôlego para um mergulho em profundidade nas águas do processo de criação, ou, nas palavras de Cecília Salles, “entrar na complexidade e fascínio do labirinto que guarda alguns dos segredos de como ideias são geradas, são desenvolvidas, são escolhidas, são rejeitadas, são retomadas e são transformadas”8.

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Se o homem é um rascunho de Deus, o livro é um rascunho do homem. Ambos, homem e livro, são um ser-a-vir no vir-a-ser da vida e do tempo. Do ser humano, o cientista Darwin dizia ser uma espécie em mutação que a natureza ainda não terminou. Do livro, o poeta inglês Auden dizia que era algo que não se terminava – abandonava-se. Portanto, a obra divina e a obra humana são assim marcadas por uma ética da incompletude, uma “estética do inacabado”9. Eterna gestação.

De qualquer forma, ainda que quantitativamente menor, o livro de Tasso Assunção está qualitativamente melhor. Beleza feita na mesa – de trabalho. É a estética da criação levando à criação da estética. Tasso é um grande poeta.

Poetasso.

* Edmilson Sanches

(1), (2), (8), (9) Cecília Almeida Salles, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em palestra em Paris (1995).

(3), (4) GRASS, Günter. “Ensayos sobre Literatura”. México, Fondo de Cultura Económica, 1983.

(5) DURAS, Marguerite. “Escrever”. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1994.

(6) Na apresentação ao livro “Universo da Criação Literária: Crítica Genética, Crítica Pós-Moderna”, de Philippe Willemart.

(7) Publicado no Brasil pela Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP), em 1993.

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OBS. 1 – No ano de circulação da obra, o prefaciador era presidente da AIL.
OBS. 2 – Na 3ª edição de “Sinergia”, este prefácio foi publicado como posfácio.