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Quantos mataram Alan?*

(Dedicado aos que ainda “sabem” chorar e indignar-se)

– E se ele fosse seu filho? Se fosse da sua família?

**

(Cinco anos depois...)

**

Não. Esse menino da foto NÃO está brincando na praia.

Não está pregando uma peça para os pais.

Não pegou soninho na areia úmida.

Esse menininho de três aninhos deixou de ser criança. Agora ele é uma denúncia.

Uma acusação.

Um tapa na cara.

Um bogue no estômago.

Um chute nos ovos.

Uma bala nos ouvidos.

Um murro na consciência.

**

Para ter vida, esse menino precisou apenas de duas pessoas.

Mas para ser morto, há cinco anos, foi preciso uma multidão: uma multidão de governantes e outras autoridades (e seus seguidores e asseclas).

Precisou de um monte de países e etnias em guerras fratricidas e religiosas.

De um magote de autoridades omissas e, por isso, igualmente cúmplices de assassinatos, genocídio, mortandade.

Apesar do jeito frágil, do tamaninho, uma criança é uma força da Natureza. Inspira cuidados. Exige proteção.

Sem a criança não existimos. A criança é pai de todo adulto. É mais velha que nós.

Mas já não se respeitam pais... nem os mais velhos.

E Alan morreu, aliás, foi morto. Seu país o expulsou – e, pelo meio do caminho em terra até o mar, de quantas rejeições não foi vítima essa criança!...

Triste o fim de Alan Kurdi. Sua terra não o queria em vida – e, na morte, até o mar o rejeitou.

Depois de sacolejar seu pequeno corpo, ao sabor das ondas, o oceano, como um vômito, jogou-o na praia, para onde, quase sempre, ondas costumam levar lixo.

Para o mar, o menino era impureza, sobra. Resto com rosto.

Alan, branquinho, vai se juntar àquele menininho africano, pretinho, que o urubu, com seu instinto natural, pacientemente esperava morrer para servir-lhe de comida. (O autor da foto da criança africana suicidou-se depois, tal o impacto daquela visão-realidade).

Sei que perto de mim, no meu país, no meu Estado, quiçá em minha cidade deve haver branquinhos e escurinhos esperando comida, amparo, carinho, futuro. Sei disso.

Mas é a foto de Alan que é a minha realidade neste exato momento. Neste instante.

Dá vontade de, por uma só e não atendida vez, ser Cristo com seu poder ressuscitador, e fazer viver o menininho africano e menino Alan e vê-los correr, brincar, sorrir, ser protegido por seus pais. (O pai de Alan, Abdullah, tentaria explicar ao filho porque a mãe, Rehan, e o irmão, Galip, morreram no mar, quando todos fugiam da Síria natal e suas guerras sem fim).

Dá vontade de, como Super-Homem, rodar o planeta Terra para trás e, assim, voltar o tempo e corrigir todas as agruras, amarguras e desventuras alânicas.

Mas que posso eu? Que pode você que me lê?

De minha parte, posso me recolher para longe das fotos. Me afastar da imagem de meninos mortos.

**

Procuro não chorar. Não é por falta de sentimentos, que me sobram e soçobram. É que, não chorando, meu caudal de lágrimas não afogará de novo Alan.

Pois, para essa criança, já basta morrer uma vez...

* EDMILSON SANCHES

Fotos:
Alan, morto; Alan, com ursinho e o irmão mais velho, Galip; e o menino africano, sem nome... e também sem vida.