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10 de agosto – nascimento de Gonçalves Dias*

GONÇALVES DIAS E EU

(Registros públicos de lembranças particulares)

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“Conto as coisas como foram, Não como deviam ser”.
(GONÇALVES DIAS, "Sextilhas")

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DIA DE GONÇALVES DIAS – Há 197 anos, em 10 de agosto de 1823, nascia, em Caxias (MA), o escritor, advogado, poeta, etnógrafo, tupinólogo, dramaturgo Antônio Gonçalves Dias, que escreveu aqueles versos que praticamente todo brasileiro, de agora e de outrora, conhece:

“Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá”.

Sou da mesma cidade (Caxias, Maranhão) e nela morei na mesma rua daquele ilustre brasileiro. Mais: o primeiro livro que li – “História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França” – também foi o primeiro livro lido por Gonçalves Dias na sua infância.

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Hotel Serra Azul, em Gramado, Rio Grande do Sul, década de 1980.

Náutico Clube, Fortaleza, Ceará, início dos anos 1990.

Colégio Rio Branco, Bairro Higienópolis, São Paulo.

Auditório Petrônio Portela, Senado Federal, Brasília.

Montes Claros e Belo Horizonte, Minas Gerais.

Mossoró e Baraúnas, Rio Grande do Norte.

Campina Grande, Paraíba. Arapiraca, Alagoas. Parauapebas, Pará.

Rio de Janeiro, Maceió, Recife, Curitiba...

Onde quer que eu esteja, em 19 Estados brasileiros e na Europa e Estados Unidos, Caxias é presença e referência permanente. Caxias e, claro, seu maior poeta e sua melhor rima – Gonçalves Dias.

Caxias, terra e rima de Gonçalves Dias.

Qualquer que seja o espaço, qualquer que seja o tempo, a mesma constatação: Gonçalves Dias vive.

Em todos os lugares acima, e muitos outros mais, em momentos internacionais,

em conferências nacionais,

em encontros regionais,

em palestras locais,

em discursos ocasionais,

em eventos formais,

em “provocações” casuais

ou em bate-papos triviais,

dou um jeito de fazer um “teste”: crio um pretexto dentro do contexto e digo, falsamente desafiador, o primeiro verso da “Canção do Exílio” (“Minha terra tem palmeiras”)... somente para, logo em seguida, perceber/receber os sorrisos cúmplices da plateia de ouvintes não maranhenses, o que denuncia que todos estavam continuando mentalmente – quando não recitando audivelmente – o verso seguinte: “Onde canta o sabiá”.

Daí em diante, fica fácil puxar ou esticar conversa acerca de literatura, de Cultura, dos “verdadeiros valores” da pessoa e das comunidades humanas. Dizer da permanência do que tem valor e da finitude do que tem preço. Preço, dá-se a coisas. Valor, dá-se a pessoas.

Os versos gonçalvinos entram como exemplo de um “valor” que se sobrepõe a muitas “coisas”. Embora a fragilidade do papel, os versos foram mais resistentes que as grandes construções de pedra e cimento, como as fábricas de tecido. Estas, aparência; aqueles, essência – e por aí podem ir as obviedades, quase platitudes.

Escritos em julho de 1843, quando Gonçalves Dias ainda não completara 20 anos, os versos da “Canção do Exílio” atravessam gerações e se depositam e se (re)transmitem quase como que por hereditariedade. Parece não mais ser essa fixação resultado da leitura, mas produto de um código genético, uma informação cromossômica que se repassa no intercurso sexual e se vai instalando na mente de cada novo ser.

Seja em gente da antiga, seja no jovem de hoje, a poesia cometida em Coimbra está inscrita na memória das várias gerações de brasileiros dos últimos 176 anos. Embora, ressalve-se, em grande número de vezes, nunca esteja o poema inteiro, de 24 versos, 5 estrofes, 113 palavras, 487 letras.

Mas aqueles dois primeiros versos, quando não toda a primeira estrofe, não há negar: está na cabeça, melhor, está na alma do brasileiro.

Caxias continua a nos relembrar, a nós conterrâneos e contemporâneos, a importância de ser a cidade onde, mais que um poeta, nasceu uma expressão de maranhensidade e de brasilidade.

Muito da obra de Gonçalves Dias mostra de peito aberto o amor, o orgulho, o sentimento de pertença ("ownership") que o poeta tinha e desenvolvia pela sua própria terra.

Quantos, hoje, manifestamente, denunciam assim orgulhosa e escancaradamente essa emoção telúrica, essa querença pátria?

Fora a conterraneidade, tenho outras “aproximações”, bem particulares, com Gonçalves Dias. Uma delas, o primeiro livro que um e outro lemos: “História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França”. Gonçalves Dias o leu aos dez anos, em 1833, aos 10 anos de idade, enquanto ajudava na casa comercial paterna, ali na Rua do Cisco (depois Rua Benedito Leite, atualmente Rua Fauze Simão), para onde seus pais, João Manuel e Vicência Ferreira, haviam se mudado, oito anos antes (1825).

De minha parte, aos cinco, seis anos de idade já havia “ouvido” e lido a "História de Carlos Magno e os Doze Pares de França", ali na Rua da Palmeirinha – onde as casas tinham, como fundo de quintal, o Rio Itapecuru.

Explico o porquê do “ouvido” o livro. No mesmo lado da Rua da Palmeirinha onde eu morava, algumas casas adiante da minha, morava o casal “seu” Miguel e dona Corina, e um ajudante deles, Seu João, homem forte, que aqui e acolá carregava seu Miguel, que era paraplégico.

Dona Corina, naqueles idos, vivia de lavar e passar roupa. Sustentava a casa. “Seu” Miguel, paraplégico, ficava como que sentado em uma rede, um pano cobrindo as pernas macérrimas pendentes, e lia, lia muito. Usava um cachimbo, cujas baforadas recendiam em toda a casa. Más línguas diziam que era diamba, tirada de algumas mudas que, diziam, eram bem cuidadas no seu quintal, para a produção das endiabradas folhas e sua transformação em trescalante fumo.

Acostumei-me a visitar o “seu” Miguel. Ele gostava da minha atenção; eu gostava das suas histórias. Ouvia a leitura de capítulos e capítulos e, às vezes, o resumo de “romances” – que era o nome que também se dava aos folhetos de literatura de cordel.

Um dia, "seu" Miguel me emprestou um livro que eu já “ouvira”. Era a história do imperador Carlos Magno. Na obra, além do magno imperador, estavam Roldão, Oliveiros, Ferrabraz e tantos personagens mais... Lembro que eu li todo o livro e que pedi explicações sobre o motivo da morte e posterior “reaparecimento” de alguns personagens após a “parte” da morte. Claro que eu estranhava aquela minha primeira leitura “séria”: naquela idade, os textos a que estava acostumado eram os de cartilhas escolares, bastante fáceis para mim, demasiado, por assim dizer, lineares, sem recursos nem estilos mais elaborados.

Em Caxias, da Rua da Palmeirinha mudei-me para a Rua da Galiana (coincidentemente, mesmo nome da mulher do imperador Carlos Magno). Tempos depois, nasceu um irmão meu... e chama-se Carlos Magno (depois veio Julio Cesar Sanches, outro irmão “imperador” na família). Décadas mais tarde, consegui, em um sebo do Rio de Janeiro, um exemplar igual ao que me fora emprestado pelo “seu” Miguel: capa em tecido e sem o nome do autor (Vasco de Lobeira). Reli os dez capítulos da obra e revi(vi)-me criança. (Uma curiosidade: Meu irmão Carlos Magno, depois que aprendeu a ler e escrever, não se fez de rogado: pegou o raro e caro livro, empunhou uma esferográfica e, nas folhas de rosto, onde houvesse o nome do imperador, um sobrenome – “Sanches” – foi acrescentado...).

Outra “aproximação” com o autor d’“Os Timbiras”: Mudei-me para a Rua do Cisco, número 1.000, próximo à “casa onde morou o poeta Gonçalves Dias” (era assim que registrava uma placa acobreada e quase despercebida). Eu estava aí por volta dos 15 anos e, diariamente, subia e descia quase toda a extensão da rua, para trabalhar no Banco do Brasil, menor estagiário. Invariavelmente, passava pela casa. Ali mora(va) a família de dona Labibe e do seu Fauze Elouf Simão, que foi vereador e presidente da Câmara Municipal. Um dos filhos, Jamil Gedeon, hoje desembargador em São Luís, e eu fomos colega de turma em todo o 2º grau (ensino médio), no Colégio São José, o “colégio das Irmãs” (missionárias capuchinhas). Ali fui presidente do Grêmio Santa Joana d’Arc durante três anos (Roldão – Roldão Ribeiro Barbosa –, coincidentemente nome de personagem do livro sobre Carlos Magno, ganhara a presidência no primeiro ano e renunciara meses depois; eu assumi, como o segundo mais votado). O ex-secretário de Cultura Renato Meneses (e novamente presidente da Academia Caxiense de Letras) e o ex-presidente da Fundação Vítor Gonçalves Neto, Jorge Bastiani, também estudavam ali, nós todos sob o tacão da querida Irmã Clemens (Maria Gemma de Jesus Carvalho).

Pois foi o colega secundarista Jamil quem me disse, ainda no colégio, que encontrara “moedas e papéis” antigos em alguns pontos da casa de Gonçalves Dias.

Mas as referências à casa da Rua do Cisco não terminam aí. Dona Labibe, mãe do Jamil, foi secretária de Educação de Caxias, na administração de José Ferreira de Castro. Ali pelos bares do Artur Cunha e do Herval, no Largo de São Benedito, contava-se a história de que a secretária Labibe, pretendendo morar numa casa melhor e não querendo derrubar a “casa onde morou o poeta”, se esforçou junto ao seu superior, instando para que ele, como prefeito, adquirisse a casa e a tombasse como patrimônio histórico. Conta-se que a resposta do prefeito foi pouco cavalheiresca e fazia comparação entre comprar a casa onde Gonçalves Dias “morou” e tombar o riacho do Ponte, onde ele, o poeta, lavava as partes, digamos, pudendas.

Pode não ser verdade o fato, mas era verdadeiro o boato – e, pelo menos este, se cuida de preservar aqui. Resumo da ópera: a casa de Gonçalves Dias foi destruída e, no seu lugar, ergueu-se uma residência de feições modernas, “combinando” com o prédio da outra esquina, que abrigava as instalações de uma companhia de telecomunicações.

No mesmo ano da derrubada da casa, como réquiem à memória de Gonçalves Dias, escarafunchei o arquivo do fotógrafo Sinésio Santos (falecido), que ficava ali próximo ao Banco do Brasil, e consegui localizar negativos da residência. Pedi que fossem feitas cópias daquelas e de outras “vistas” de Caxias. Separei uma foto da ex-morada de Gonçalves Dias e a enviei, junto com um breve texto, para a Rede Globo de Televisão (Rio de Janeiro). Foi menos por denúncia e mais por sentimento de perda. Disseram-me que saiu um rápido registro no jornal do meio-dia ("Jornal Hoje"). Não confirmei.

Gonçalves Dias, sabemos, morreria com 41 anos, no dia 3 de novembro de 1864, afogado nas águas marítimas da baía próxima do município de Guimarães (MA), após o naufrágio do "Ville de Boulogne", o navio que trazia o caxiense, muito doente, de volta à sua terra.

Deus havia atendido o Poeta, que, na "Canção do Exílio", suplicara, 21 anos antes, em julho de 1843, que não morresse sem que visse de novo sua terra.

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Estas anotações, com algo de confessional, são uma episódica e epidérmica contribuição ao trabalho dos caxienses de todas as idades que teimam cuidar do que Gonçalves Dias merece (memória) na cidade que há 197 anos o viu nascer (História).

Parabéns, Caxias! Viva Gonçalves Dias!

* EDMILSON SANCHES

Fotos:
1) O poeta Gonçalves Dias (pintura).
2) Casa de sobrado onde morou o escritor, em Caxias, e, na esquina, a mercearia do seu pai.
3) A mesma casa, sem o sobrado, pouco antes de ser demolida.
4) Baixio dos Atins, região no município de Guimarães (MA), em cujo litoral Gonçalves Dias faleceu, como única vítima, por afogamento, do navio "Ville de Boulogne" (Cidade de Bolonha) em 3/11/1864.
5, 6 e 7) A Praça Gonçalves Dias, no Centro de Caxias, dia e noite, com a estátua do poeta.
8, 9 e 10) Edmilson Sanches, com outros estudiosos, em visita a Guimarães. Veem-se o escritor, pesquisador e engenheiro Raimundo Nonato Medeiros da Silva, ex-presidente da Academia Caxiense de Letras (falecido em 31/8/2019); a psicóloga, professora e escritora Dilercy Aragão Adler, presidente da Sociedade de Cultura Latina do Brasil; e o professor e escritor Weberson Grizoste, que fez mestrado e doutorado sobre Gonçalves Dias em Coimbra (Portugal), mesma universidade onde o poeta caxiense estudou e se formou em Direito.