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LITERATURA MARANHENSE: O sobradinho da Rua do Egito*

Numa bela noite, no sobradinho de azulejos brancos, [o de mirante e à esquerda da foto, marcado por uma seta], residência do doutor Fernando Viana, na Rua do Egito, quase defronte do Colégio Santa Teresa, em São Luis, ele, o poeta e médico dono da casa ditava para que sua filha Maria Zélia anotasse, aliás, com uma letra muito bonita, num simples papel pautado de carta, que tinha às mãos naquele momento, esta beleza de texto que, à primeira vista, nos dá a impressão de ser apenas uma bela prosa musical, mas que, na verdade, é um belíssimo soneto, fácil de ser achado nas suas quatorze linhas clássicas.

Dentre os presentes naquele sarau, como de costume, estavam o anfitrião, sua mulher, dona Lourdes, escritora de fina estirpe, o médico e sacerdote, João Mohana, o jornalista e ensaísta José Erasmo Dias, o jornalista e poeta Emílio Azevedo, sobrinho dos irmãos Artur e Aluísio Azevedo e pai dos brilhantes filhos Maria Thereza Azevedo Neves e Américo Azevedo Neto; e mais o jornalista e poeta Amaral Raposo, considerado “prata de casa”, vez que acompanhou Fernando Viana, à Bahia, quando este foi estudar Medicina; foram seis anos de intenso labor; enquanto Fernando Viana se debruçava sobre os grossos volumes da ciência de Hipócrates, Amaral, para ajudá-lo a superar a saudade da província distante, logo arranjou um lugar na redação do jornal “A Tarde”, como meio de sobrevivência e, nos momentos de folga, o Zeca, [era este o abrandamento de afeto do afiado jornalista], se abraçava ao velho violão e a uma garrafa de pinga “da boa”... Em vez de a saudade ser espantada, era atraída...

Ainda, dentre os presentes, os filhos  de dr. Fernando Viana, Alfredo Luís, o belo poeta de “A Rosa” e do “Canto a Inês”, funcionário do Banco do Brasil e estudante de Medicina, que viria ser, mais tarde, um renomado psiquiatra e professor da Universidade Federal do Maranhão e seu irmão Waldemiro Viana, o Nena,  como era carinhosamente chamado pelos íntimos, que já estudava Direito às vésperas de construir sua linda e querida família, ao lado de sua amada Yara, mulher e companheira pela vida toda,  como também, às vésperas de construir sua circunspeta obra, composta de “Graúna em roça de arroz”; “A questionável amoralidade de Apolônio Proeza”; “O Mau Samaritano”; “Passarela do Centenário”,  [sonetos/perfis] e “A tara e a toga”, romances estes do mesmo naipe dos de Josué Montello, José Sarney e Odylo Costa, filho, segundo o senso crítico do nosso Manoel Lopes, textos criados “pari passu” com o Naturalismo de Aluísio Azevedo e, ainda,  segundo Câmara Cascudo, “um grande e soberbo romancista [ “pedes in terra, ad sidera visus”] ,  com os pés na terra e os olhos nas estrelas.

Os que estavam ali, naquela noite... Os mesmos que se reuniam semanalmente, no sobradinho, já estão com Deus... Até o nosso benjamim, Waldemiro Antônio Bacelar Viana, Deus o chamou há pouco... Maria Zélia, Maria Thereza, Américo e o autor destas linhas, todos na época, na casa dos vinte anos, naturalmente, como simples espartanos, mesmo nascidos em Atenas, no convívio intelectual de tantos Péricles, envelhecemos... Mas a produção intelectiva de todos, não, porque essa gama espiritual a juntar-se com a saudade, enquanto esta se aconchegar em um peito, não morrerá nunca, pela meiguice do enternecimento e pela magia do encanto, essências que ficam...       

Depois que Maria Zélia concluiu a redação ditada pelo seu pai, foi lida por ele aos presentes, em voz alta, mas embargada por aquela natural emoção que a nossa “Ilha do Amor” é costumeira e viseira a nos deixar na alma... É este o texto de Fernando Viana que, depois de lido, me foi presenteado:

“São Luís velha catita, minha cidade bonita, que imita as irmãs de Portugal, foste a cidade marcada para ser um dia a sonhada capital ambicionada da França Equinocial. / Cidade que amo tanto, São Luís do meu encanto, eu derramo em cada canto minha ternura por ti, tu és meu filão sem ganga, minha cidade miçanga, que o rio Anil e o Bacanga te cingem como uma tanga de caboclinha tupi. / São Luís de mil ladeiras, de lindas moças brejeiras e viridentes palmeiras, onde canta o sabiá, da procissão do bendito, meu ‘sinhô’ São Bendito, do gostoso peixe frito e do arroz de cuxá. / São Luís das marés baixas que expõem cr’oas que são faixas onde habita o camarão, das belas e extensas praias, rendadas como cambraias em perene exposição, na graciosa cadeia que abrange Ponta da Areia, Olho d’Água e Araçagi, e, do outro lado, a da Guia, que é por onde principia a do porto do Itaqui. / Os teus ocasos grandiosos, portentosos, majestosos, têm tanto fulgor de luz que a gente fica pensando que o sol rubro, agonizando, parece mesmo ir tombando na baía de São Marcos, cheia de velas de barcos, brancas, vermelhas, azuis, de velas triangulares, elegantes, singulares, garbosas cortando os mares ao vento bom que as conduz! / São Luís velha catita, minha cidade bonita, debruçada sobre o Anil, podem julgar-te mendiga, desairosa rapariga, mas para mim, minha amiga não há ninguém que consiga conter-me ou impedir que eu diga que és a melhor do Brasil!”

Esse texto e mais alguns de Fernando Viana, endossei-os a Waldemiro, um pouco antes de ele adoecer e os enviei para sua guarda definitiva, como estou a fazer com outras preciosidades literárias, doando a bibliotecas e a instituições afins, já que se aproxima dos jovens daquele tempo a “última volta”, de que fala Paulo a Timóteo, e eu sou um deles...

Nesse soneto/canção, Fernando Viana, o nosso queridíssimo Feliciano Ventura [era este o seu pseudônimo literário], exprime o nosso sentimento a São Luis... Por que, segundo Jacques Prévert, “há momentos na vida em que se deveria calar e deixar que o silêncio falasse ao coração, pois há emoções que as palavras não sabem traduzir”, o que vai ao encontro de velho axioma quando ratifica que “a vida é curta, mas as emoções que podemos deixar duram uma eternidade. A vida não é de se brincar porque um belo dia se morre”.

* Fernando Braga, in “Conversas Vadias”, antologia de textos do autor, a ser brevemente publicada.

Ilustração: Foto do sobradinho branco da Rua do Egito, marcado por uma seta, solar de dr. Fernando Viana e sua família.