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LITERATURA MARANHENSE: “Do têxtil ao texto, do vestir ao educar”*

O BLOG DO PAUTAR abre espaço para o projeto LITERATURA MARANHENSE – programa que incentiva o interesse pela leitura de (bons) textos e, ao mesmo tempo, valoriza os escritores (genuinamente) maranhenses. Aproveite... Boa leitura!

(Posfácio ao livro “De ‘Mulher-Maravilha’ a ‘Cidadão Persi’: Professoras Capulana do Educar em Direitos Humanos”, de Maria do Socorro Borges da Silva, 2019. Socorro Borges é maranhense de Caxias, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Caxias e professora-doutora da Universidade Federal do Piauí)

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Quando a corte de dom João VI chegou ao Brasil em 1808, as mulheres que desciam dos navios usavam turbante. Pronto! Logo, grande parte da população feminina do Rio de Janeiro (à época com 60 mil habitantes) passou a usar aquela faixa de tecido enrolada na cabeça. As brasileiras acreditavam que usar turbante era a última moda nas cortes europeias, no caso, Portugal.

Era engano. As mulheres que vinham nos navios foram atacadas por piolhos, muitos piolhos. Não dava para suportar tantos bichinhos daqueles durante cem dias, o tempo da viagem entre Lisboa e o Brasil. Resultado: tiveram de cortar todo o cabelo e jogar fora as perucas, ambos tornados depósitos e criadouros daqueles insetos.

Além disso, as mulheres foram obrigadas a passar, na cabeça, gordura animal e enxofre, elemento químico mais do que fedorento, odor assemelhado ao do ovo podre e que já foi comparado ao “cheiro do inferno em chamas” – credo!

E, para não se mostrarem carecas e para “abafar” o mau cheiro que exalavam, as mulheres cobriram suas cabeças com turbantes.

Como se vê, há sempre uma história por baixo dos panos...

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Capulana é um desses panos. Nela, tudo é metáfora e História – em suas partes e em seu processo. Em suas formas e em suas funções. Em seus desenhos coloridos. Em sua ancestralidade asiática, arábica, e em sua aculturação africana, moçambicana.

Capulana é pano, tecido, fazenda. Quase sempre áspera e, às vezes, lisa. Natural ou artificial: algodão, linho, seda, fibra sintética. Na feira ao livre ar e na loja, mercado, bazar.

Na capulana, trama e urdidura são mais que fios que se (entre)cruzam: são histórias que se contam e encontram.

Capulana é vida, alegria e morte. Veste a noiva. Carrega o bebê. Traz a colheita. Vai à festa. Esconde o choro. Revela o luto.

Capulana assume formas e funções. É o tecido feito e o que se faz com o tecido. Capulana é indumentária, roupa, vestuário. É toalha, lenço e lençol. Cobertor e cortina. É saia, sari e sarongue. É touca, turbante, echarpe. É vestido e polaina, canga e tanga. É calça, camisa e calção.

Capulana é desenho, estampa e pintura. História, Arte, Cultura. Suporte de mensagens educativas e sociais, de propagandas políticas e publicidades comerciais.

Capulana é laço, vínculo, união. É economia, moda, decoração. Identidade e Tradição, Poder e Religião.

Capulana é sujeito que sujeita diversos verbos, pois ela veste, enrola, traja. Envolve, põe, volteia. Estende, circunda, rodeia. Cobre, protege, agasalha. Adorna, enfeita, orna.

E educa.

Sim, educar. Pois capulana é um pano que não é apenas para (se) vestir. Um pano que não é mais para só cobrir(-se).

Sim, há um pano que, mais que vestuário, é símbolo. Ele comunica. Informa. Educa.

Pano é tecido. E “tecer” é o primeiro verbo deste livro, e seu penúltimo. Um tecido e indumentária, a capulana é, neste livro, um dos sujeitos principais, depois das mulheres professoras.

A mulher é a tecelã do homem e também de si, e de muito mais, inclusive, como a Autora registra aqui, “das coisas e das palavras”, pois “toda mulher carrega uma casa dentro de si”. Do ventre vestíbulo – gerar, gestar, gerir – ao colo-abrigo onde filhos e homens e amores se colam e se abrigam, pousam e repousam.

Tanto em letras quanto nas imagens, a capulana é revelada como o verdadeiro tecido social, seja por sua utilidade no cotidiano ou por sua variedade de usos; seja pela função educativa que tem, seja pela História coletiva que contém.

A capulana é tecido. É têxtil. E é texto. Tecido que, ao longo dos tempos, tem sido tenso, intenso. Fio e fibra – fio da História, fibra da mulher.

Tensão, intensidade, fibra... No desfiar dessa História, nas voltas que a capulana dá, e deu, as mulheres negras e seus companheiros, filhos, familiares, retirados da plena liberdade de suas terras e escravizados pela força opressora, má, violenta, criminosa de brancos em busca de lucros.

Jogadas também em porões de navios, em um mar de desrespeitos ao que é Direito, ao que é Humano, ao que são Direitos Humanos, as mulheres procuravam resistir com crianças em capulanas às costas e um (in)certo futuro à frente.

O Atlântico era um oceano muito mais comprido e dolorido do que os dois, três meses de viagem. Havia um excesso de carências: comida, água, higiene, respeito... Cingida ao torso, à cabeça, às costas, a capulana era a memória têxtil, o tecido que carregava um pouco da História, da Cultura, da Liberdade, da prática identitária cotidiana, deixadas forçadamente para trás no solo pátrio, na terra “mater”.

Como documenta a Autora, a capulana, utilizada pelas professoras e alunos, reencontra na Educação seu ambiente de liberdade: “educar”, na origem (“ex” + “ducere”), significa “conduzir para fora”, “deixar de ser conduzido” – ou, tudo isso, libertar-se.

Com seu “De ‘Mulher-Maravilha’ a ‘Cidadão Persi’: Professoras Capulana do Educar em Direitos Humanos”, livro inaugural, Maria do Socorro Borges da Silva, técnica, inventiva, poética, oferta uma parte de sua tese de doutorado em Educação, uma parte íntegra e consistente o suficiente para não se sentir falta do todo...

... e ao mesmo tempo desejá-lo.

Parabéns, Socorro Borges!

* EDMILSON SANCHES