Skip to content

LITERATURA MARANHENSE: O que não se pode substituir*

[Aos meus netos Brian, Ana Luísa, Heitor e Eloá]

Tempos há! Era São Luís do Maranhão, um pouco abaixo da Linha do Equador, minha Ilha-cidade... e chovia naquela excelente tarde de antevéspera de Natal...

Em nossa casa, acabo de fechar o livro “Os Maias”, de Eça de Queiroz que estava a ler, numa edição da Livraria Ernesto Chardron, do Porto, edição de 1888, que, até hoje, o tenho, no exato momento em que me dirigia à cozinha, talvez ainda com o espírito carregado pela ação do livro e pela fina ironia com que o autor define os caracteres e apresenta as situações daquele romance realista onde não faltam o fatalismo, a análise social, as peripécias e a catástrofe próprias do enredo passional, para deparar-me em cima da mesa com uma garrafa de cachaça, o que de logo, depois de perguntar à secretária de minha mãe o porquê daquele objeto benfazejo, ser informado, entre um riso maroto, tratar-se da “pinga do peru”. Sim, do peru, que deveria ingerir uma boa ‘talagada’ antes de morrer, para que sua carne ficasse mais tenra e macia... Poderia até ser uma morte gloriosa, mas não tanto assim... Juro que fiquei estarrecido com aquela desculpa esfarrapada. Resolvi, depois de saber daquele rito, não só macabro, mas um tanto quanto carnavalesco, experimentar o aperitivo do peru, a tomar antes de qualquer iniciativa, uma dose daquela aguardente que se me parecia da boa, vinda de presente de algum engenhoso amigo, pois a garrafa não tinha rótulo e era tampada com rolha de buriti, uma autêntica cachacinha da roça, a rescender um adocicado aroma de cana...

Lá pelas páginas tantas, entre emoções, razões, propósitos e aperitivos que já eram servidos alternadamente para mim e para o peru, resolvi deitar-me numa rede atada em um quartinho do corredor abraçado ao meu amigo, o qual, naquele instante o tinha livrado daquela estúpida e infeliz maldição, a de morrer na véspera do Natal, contagiado por uma doce alegria que lhe invadia a alma, se é que peru tem alma, mas que, forçosamente, lhe fazia pender a crista para um dos lados, a cobrir-lhe o olho já baixo, a desaparecer pela pálpebra. Assim continuamos: eu tomava uma, e dava outra para o peru, a cantarolar músicas de Natal para fazer o ambiente mais propício, principalmente por ter salvado uma vida, enquanto o peru, com um semblante já um tanto quanto depressivo, coitado, por mais que eu o dissesse que ele não morreria, parecia não acreditar e me respondia com sufocados soluços, como se quisesse cantar ou dizer-me alguma coisa etílica e onomatopaica...

Ai de mim e do peru...  Minha mãe acabara de chegar e, com todo direito, a pôr termos àquela baderna e estabelecer, naturalmente, seu mando de dona de casa, tentou arrancar-me dos braços o meu velho e estimado amigo, assim eleito por mim, há pouco, por circunstâncias tão dolorosas. Minha mãe queria porque queria que se procedesse ao “perucídio” [será este o substantivo?], a afirmar que o mesmo já deveria estar, àquelas horas, em vinho d’alho, num alguidar de barro previamente preparado para tanto, o que foi por mim contestado veementemente, impedindo-a, daquela forma, que o fizesse, a responsabilizar-me em trocar aquela vítima simpática e indefesa, por um belo pernil já pronto e assado, bem tostado, como se diz, com farofa e tudo... O que minha mãe enérgica, terna e querida, aquiesceu depois de alguma relutância à minha proposta...

É verdade que aquele Natal, na quebra da noite ou madrugada de 24 para 25, e também aniversário de minha mãe, como sói acontecer, graças a Deus, teve tudo na ceia, inclusive o tal pernil, menos o tradicional peru. Não nego que minha mãe ressentia-se da ausência da ilustre ave; quanto ao meu pai, não fazia questão; como um bom lusitano, ficava feliz em ter alguma coisa para “beliscar” e a bebericar com sua caneca de vinho tinto-seco, a lembrar-lhe as ribeiras do velho Douro; nós outros, filhos, éramos acostumados o que a mãe nos servia, a qual de há muito, assim, nos preparava para a mesa da vida, do mundo... Oh, Deus, também tinham outras coisas!... De qualquer maneira, eu me sentia muito feliz... Foi o Natal mais leve e tranquilo que passei na vida, principalmente quando olhava o peru, já curado da ressaca, curtindo sua liberdade naquela noite colorida de festa, a sacudir-se alegre no quintal...

Mal sabia eu, que muitos anos depois, quando cuidava da vida em outras terras, bem distantes, meu pai morria na Noite de Natal, aniversário, como disse, de minha mãe. Naquela noite, talvez a pressentir, já que tínhamos um amor muito grande um pelo outro, nada comera e nada bebera... Adormeci cedo, mesmo sem querer, como se estivesse entorpecido... E só vim saber que o ‘Velho Capitão’ tinha zarpado sem volta, pela manhã, quando sufoquei meu choro terrivelmente triste, naquela manhã de chumbo, tão longe do meu país de infância...

E outros Natais vieram... Nunca mais o mesmo! Até chegar-me este de hoje... Confesso que meu cérebro se povoa daquele bando de guizos a lembrar-me de que, com brincadeiras, animações e alegrias, naquela véspera de Natal, tão distante, pude salvar o peru daquela morte anunciada e lhe dá de presente o livramento, mas a vida de meu pai, não, porque os desígnios de Deus são intransferíveis e rigorosamente determinados para serem cumpridos!...

* Fernando Braga, in “Conversas Vadias”, antologia de textos do autor.

Ilustração: Natal na Europa.