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LITERATURA MARANHENSE: O homem-tijubina & outras cipoadas entre as folhagens da malícia*

O professor, ativista cultural e poeta Francisco de Assis Carvalho da Silva Júnior, ou simplesmente Carvalho Júnior, chega pela terceira vez ao ‘Panteon das Letras do Maranhão’ com este seu belo livro de poemas, edição bilíngue, cujo título nomeia este dedo de prosa. O livro é de uma feição gráfica extraordinariamente bonita, a estampar em toda a extensão da capa e contracapa, o desenho mítico do homem-tijubina, impresso em papel linha d’água, poroso como nuvem, onde levitam versos de mestre.

O poeta Carvalho Júnior tem pela palavra a mesma fascinação que o lagarto tem pela solidão das pedras, como diz o nosso genial Manoel de Barros, e assim, o poeta nos apresenta este “homem-tijubina”, dizendo que ele “tem um paladar exigente, não digere o ovo do óbvio, somente silêncio de pássaros lhe passam pelos gorgomilos, quando o indagam a respeito desta passagem, diz que o outro lado da vida está no verso, não tem idade, apenas caminha, às vezes, para a frente quase sempre para o fundo do poço que guarda as lágrimas dos seus ancestrais, é um composto de cortes de unhas-de-gato e incoerências”.

Depois dessas “incoerências”, o poeta vai buscar Fernando Pessoa, o qual traz consigo ‘outras cipoadas entre as folhagens’ e, como se estivesse a sair do “Martinho da Arcada”, pondera: “talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo. E é rabo para aquém do lagarto remexidamente”, do que se aproveita Carvalho Júnior para dar, subjetivamente, uma boa cipoada com estes versos magistrais: “talvez tijibunda me chamasse, / não seria com o poeta, / invisível aos olhos do homem”.

Enquanto o rabo do lagarto ziguezagueia aquém dele, lagarto, este se remexe também além do rabo cortado [confesso que nos meus solilóquios gostava de ver e fazer isso em meu país de infância, cortar o rabo de osgas, “tarentola mauritanica”, bichinhos viventes nas paredes dos casarões de São Luís... tive remorsos por algum tempo, até quando me disseram que a natureza recompunha o rabo amputado]. Realmente, o rabo cortado continua a mover-se, motorizado pelos nervos do lagarto provisoriamente tocó, suro..., mas que logo, logo, renasce!...

Vejamos o que diz o poeta Carvalho Júnior nesta outra cipoada, nestes versos magnificamente perfeitos: “única espécie de silêncio permitida na casa / das tiranobinas: o medo. / serei birra e palavra enquanto folclores / e fôlegos me rastejarem”.

Continua o poeta caxiense a cantar entre a folhagem da malícia: “como em manhãs de domingo, / em que versos de herberto descobrem, / do quintal da infância, o portal aberto [...] o mundo é em chicote / arcovertebrado em anomalias, / a cauda amputada de um calango / achincalhando a nossa mãe”.

Vejamos este poema, a formar uma oitava solta, que atende por “tujibina’lma”: “Das nenhumas almas que tenho / treze têm o corpo de tijubina, / a cabeça esfolada de pedra, / a carne exposta ao sol da sorte. / a do que me chora em sangue / é a mesma que em quimeras ri / quanto mais me decepam o ânimo, / mais recomponho a tinta da teimosia”.

Nesse poema, não existe em nenhuma de suas almas, nem mesmo nas treze restantes, um lugar-comum que se possa repreendê-lo... É a metade da consciência anímica da tijubina, é a metade do psiquê imaterial desse calango, que tem a outra metade homem para estragar o seu todo. Se a tijubina fosse somente tijubina, seria muito mais feliz, e o homem somente homem, talvez nem tanto...

O poeta Carvalho Júnior

Observemos, durante o canto, que a tijubina é prefixo na sua identidade personalíssima, e sufixo nas muitas adjetivações no processo kafkiano que tem de submeter-se, de acordo com o cenário em que opera e vive... digamos que essa tijubina tem muito de camaleão...

Nessa dúvida, o poeta Carvalho Júnior foi, mais adiante, buscar a taxonomia científica do calango. Com a formação em Letras e o espirito apurado há tempos nas lides literárias, o poeta sabe manejar, com grandeza estilística, este nosso idioma em que Camões cantou, chorou e pediu esmolas; assim, Carvalho Júnior brinca de efeitos com figuras de gramática, como neste “um espântano de cores”: “por mais tijuterna que seja, / a tijubina traz tijolos tensos / e uma carabina velha no dorso. / com o movimento do rabo / hábil, de lâmina oculta, / ela mata com delicadeza / as feiuras do mundo-selva, / um ‘espântano’ de cores / que não morre debaixo / da casca do peito / do homo lagartiens”... Eis aí a taxonomia científica desse calango metade homem!

Aqui, Carvalho Júnior chama o poeta Paul Verlaine para que traga à tona de nossa percepção poética estes “Pelos chãos da malícia pulsativa”... E o poeta francês chega a bradar alto: “Le vent de l’autre nuit a jeté bas l’amour’” [O vento da outra noite derrubou o amor.], talvez para chamar atenção de Arthur Rimbaud, enquanto o poeta deste “homem-tijubina” nos brinda com este poema “Araruta”, fazendo provas aos maranhenses de boa cepa que esse farináceo também tem seu dia de mingau.

Alegra-me dizer que esses versos de “Araruta” são dignos de se ombrearem com os do tresloucado Paul Verlaine, autor de “Poemas saturninos”, o “magnum opus” de sua poemática. Escutemos o poeta Carvalho Júnior: “Somos feitos das mesmas fomes dos nossos pais, / das mesmas lenhas que os guardaram / do fio súbito das noites caseadeiras de exílios. / De vez em quando, ouço de longe / a voz da lágrima do meu pai e de minha mãe. / Um quintal de ararutas nasceu dentro / do chão cansado dos meus olhos”.

Por fim, deixo com alegria, nesta prosa, para fazer companhia a esse homem-tijubina, uma lagartixa ilustre que vive escondidinha desde 1853, nas páginas da “Lira dos Vinte Anos”, pouca conhecida por muitos, mas que, aqui, a arribitar a cabeça por entre os ângulos das pedras, se faz anunciada nestes excertos pelo próprio autor, o amado e romântico poeta Álvares de Azevedo: “A lagartixa ao sol ardente vive, / e fazendo verão o corpo espicha: / o clarão dos teus olhos me dá vida, / tu és o sol e eu sou a lagartixa. / Amo-te como o vinho e como o sono, / tu és meu corpo e amoroso leito...”

Assim se prova que não só de aves canoras sobrevivem os poetas, mas também de lagartixas e tijubinas!

* Fernando Braga, in “Conversas Vadias”, [Toda prosa], antologia de textos do autor.