Skip to content

23 de abril – Dia Mundial do Livro, Cervantes e autores maranhenses*

O Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor tem origem na Espanha. A data 23 de abril é a do falecimento, em 1616, de Miguel de Cervantes Saavedra, o notável espanhol autor de “Dom Quixote”, magistral obra em dois volumes (o primeiro lançado em 1605; o outro, 1615).

Mas há registros dando conta de que, desde 1923, e também no mês de abril, Cervantes já era homenageado em sua terra natal, com a criação de uma Feira de Livros em sua homenagem (homenagem consolidada – até pela realeza espanhola – nos anos seguintes, com registros em 1926 e 1930).

Em 1995, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) oficializou a data, e acrescentou-se que, naquele mesmo dia 23 de abril de 1616, além de Cervantes, outro gigante da Literatura universal também havia falecido: William Shakespeare, autor sobretudo de grandes textos teatrais que há séculos são levados ao palco e reinterpretados no Cinema.

Também foram citados outros autores com nascimento ou morte registrados em 23 de abril. (Não se dirá, aqui, da diferença de dias que aparece quando se converte o calendário juliano, vigente na Inglaterra shakesperiana, para o calendário gregoriano, vigente na maior parte do mundo, ocidental sobretudo).

Com uma obra numerosa e variada, e também sendo muito lido, citado e estudado, ainda assim Shakespeare não superou seu contemporâneo de morte: Cervantes teve uma de suas obras, o “Dom Quixote”, eleita como o melhor livro de todos os tempos, segundo escritores de qualidade inconteste e de fama mundial que se reuniram na Noruega, em maio de 2002, e escolheram a obra do sofrido autor espanhol  --  que penou como escravo, tinha problemas financeiros graves, convivia com brigas domésticas com filha e mulher (que o deixou), sofreu o descaso de desejados protetores na nobreza da Espanha, manteve interações homossexuais (algumas delas, imagina-se, forçadas).

Além disso, Cervantes sofreu “ataque” de um até hoje insabido autor, que escreveu a continuação de seu “Dom Quixote”, beneficiando-se do sucesso da obra naquelas duas primeiras décadas dos anos 1600, pouco mais de quatrocentos anos atrás. (Ocorre que, em texto introdutório a outra obra sua, Cervantes antecipou que “Dom Quixote”, lançado em 1605, teria continuação, uma segunda e última parte. Alguém até hoje não descoberto, que não gostava de Cervantes e que também tinha gosto pelas Letras e pela escrita, antecipou-se a ele e escreveu uma obra pseudônima, dizendo ser a continuação. Isso obrigou Cervantes a apressar a segunda parte, final, de seu romance, que foi lançada em 1615, um ano antes de sua morte, em 1616).

O “Dom Quixote” de Cervantes é um dos orgulhos da nação espanhola. Com certeza, como livro e a partir da obra, a Espanha apresenta-se maior que seus 500 mil quilômetros quadrados (área dez por cento menor que a da Bahia, por exemplo). Essa é a força da Literatura e da nação que preza a Cultura.

*

Cervantes e o 23 de Abril como Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor têm diversos pontos de contato com o Maranhão e autores maranhenses. Como antecipei, quando da oficialização da data pela UNESCO, em Paris, em 1995, foi registrado que o 23 de abril lembrava a morte de Cervantes e de Shakespeare em 1616, e, entre outros registros, marcava também o nascimento do romancista russo Vladimir Nabokov, em 1899, e o romancista francês Maurice Druon, em 1918. Nabokov é autor, entre outras, da obra “Lolita”, de 1955, clássico da literatura mundial, filmado e refilmado, onde um professor universitário vive sua obcecação pela menina Dolores, apelidada Lolita, de 12 anos.

E onde o Maranhão “arranha” nessa história?

O outro escritor nascido em 23 de abril de 1918, Maurice Druon, falecido em 14 de abril de 2009, nove dias antes de completar 91 anos, era bisneto do escritor maranhense Odorico Mendes, que nascera em São Luís, em 1799, e morrera em Londres, em 1864. Maurice Druon pertencia à mais referendada de todas as academias do mundo ocidental, a Academia Francesa, da qual era decano e secretário perpétuo. Druon foi também ministro da Cultura em seu país, a França, pela qual havia lutado, inclusive na Resistência, em terras francesas e em Londres, durante a Segunda Guerra Mundial. Das dezenas de livros que Druon escreveu, um deles e sua única obra de ficção infanto-juvenil, chamada “O Menino do Dedo Verde”, de 1957, é uma das obras do gênero mais conhecida no mundo.

Druon esteve algumas vezes no Maranhão, terra de familiares e antepassados – a partir de Manuel Odorico Mendes, jornalista, político, tradutor, poeta e humanista, considerado o precursor da moderna tradução criativa, com suas traduções, pioneiras e integrais, das obras de Virgílio (em latim) e Homero (em grego) para o português. Odorico Mendes também traduziu obras do francês Voltaire. Em 1999, nos eventos de 200 anos de nascimento de Odorico Mendes, em São Luís, lá estava Maurice Druon, prestigiando a memória do talentoso bisavô.

Portanto, há sangue e história maranhense – pela descendência de Odorico Mendes – nas homenagens que a UNESCO fez quando, ao instituir o Dia Mundial do Livro, lembrou grandes nomes que nasceram ou morreram em 23 de abril...

*

Relembrando o nome de Cervantes, autores maranhenses tinham-no em sua predileção, a ele dedicando estudos e até livros. É o caso, por exemplo, de Josué Montello (1917-2006). O notável romancista, ensaísta, jornalista, professor e teatrólogo são-luisense é autor de pelo menos duas obras sobre Cervantes: “Cervantes e o Moinho de Vento”, lançado em 1950 (Gráfica Tupy, Rio de Janeiro – RJ), e, três anos depois, “Viagem ao Mundo de Dom Quixote” (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza – CE, 1953). Sobre o ensaio montelliano de 1950, o ótimo escritor, historiador e crítico literário paulista Brito Broca (1903-1961), em setembro de 1952, anotou, já ao final de sua alentada e excepcional introdução a uma edição de “Dom Quixote de La Mancha”:  “[...] muito erudito e penetrante, no qual o autor procura ver no romance em questão uma sátira ao leitor crédulo”. E ainda: “Não será demais que patrícios nossos, como Josué Montello, venham a descobrir sentidos novos em tal livro”.

Brito Broca também registra, antecedentemente às anotações sobre o ensaio de Montello, que o maranhense, de Caxias, Coelho Netto, respondendo a João do Rio sobre “quais os autores que lhe haviam contribuído para a formação literária”, teria colocado “Dom Quixote”, precedido de, primeiro, “As Mil e Uma Noites” e “toda a obra de Shakespeare”.  Eis a íntegra do trecho:

“No inquérito realizado via ‘Gazeta de Notícias’, por volta de 1907, e reunido em volume, sob o título ‘O Momento Literário’, uma das perguntas dirigidas por João do Rio aos escritores era: quais os autores que lhe haviam contribuído para a formação literária. Coelho Neto coloca em primeiro lugar ‘As Mil e Uma Noites’; em segundo, toda a obra de Shakespeare; em terceiro o ‘Dom Quixote’. Mas a influência deste último decerto se filtrou de tal maneira na numerosa obra do romancista maranhense, a ponto de não nos permitir identificar qualquer manifestação concreta ou precisa.”

O parágrafo acima é o texto com a leitura de Brito Broca do que escreveu ou transcreveu João do Rio após a entrevista deste com Coelho Neto, texto publicado no livro “O Momento Literário”, onde Broca reúne 36 autores – outros oito não responderam ao “inquérito” (a lista de perguntas), entre eles os maranhenses Graça Aranha, que alegou que se deve “escrever pouco”; Aluísio Azevedo, que estava abarrotado de trabalho (“diante de mim uma torre de papeis”, teria escrito) no consulado em Cardiff, no País de Gales (Reino Unido); e Artur Azevedo, que, segundo Broca, “não disse nada”.

Afora Coelho Netto, de maranhense entre os 36 escritores entrevistados em "O Momento Literário" só vejo Raimundo Correia, o último do livro, onde ocupou só três páginas. Também vejo Rodrigo Otávio, que casou com uma das filhas de Ricardo Leão Sabino, são-luisense e, residente em Caxias, professor de Gonçalves Dias, lá na Rua do Cisco, onde morei, região central da cidade "Princesa do Sertão Maranhense" minha terra natal.

Vejo também, entre os 36 autores do livro “O Momento Literário”, Medeiros e Albuquerque, pernambucano, que deu a ideia desse livro para João do Rio, que por sua vez lhe dedicou a obra. Medeiros de Albuquerque (1867-1934) foi da Academia Brasileira de Letras e era filho do maranhense, de Caxias, Joaquim José de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque, de quem herdou talento e o nome (com a inversão dos prenomes iniciais – José Joaquim).

A leitura direta do texto de João do Rio sobre Coelho Netto diz mais, e diferentemente, do que resumiu Brito Broca em sua magistral introdução a uma das edições brasileiras de “Dom Quixote”. Na transcrição de Brito Broca, Coelho Netto diz logo, com sua “rude franqueza meridional” (como anotou o autor paulista) que, para a formação literária dele, “não contribuíram autores, contribuíram pessoas”. Continua o caxiense: “Até hoje sofro a influência do primeiro período da minha vida no sertão. Foram as histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias de negros cheias de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, o sonho dos civilizados... Nunca mais essa mistura de ideais e de raças deixou de predominar, e até hoje se faz sentir no meu ecletismo. A minha fantasia é resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos. É do choque permanente entre esse fundo completo e a cultura literária que decorre toda a minha obra [...]”.

Só quando João do Rio insiste (“– Há, entretanto, uma parte da sua obra...”) é que Coelho Neto, nem deixando o jornalista carioca completar a frase, diz:

“– Sim, a parte fescenina. É aí, no ‘Fruto Proibido’, que começo a ter a responsabilidade do meu trabalho. O amor pelas lendas, pelo fantástico ficou porém. O livro que mais me impressionou foi ‘As Mil e Uma Noites’. Depois toda a obra de Shakespeare, o ‘Dom Quixote’, os poetas gregos, Plutarco, que releio constantemente...”

João do Rio procura saber dos autores modernos de predileção de Coelho Netto, que lista:

“– Flaubert, o admirável Maupassant, Taine, que é a base da minha visão crítica, e os ingleses contemporâneos, com especialidade os dramaturgos.”

Coelho Netto menciona autores portugueses e outros mais. A parte que lhe coube em “O Momento Literário” de João do Rio tem sete páginas. Faço questão de antecipar, no parênteses abaixo, um pouco das informações que estarão em texto que preparo sobre o caxiense Aderson Ferro, escritor e odontólogo pioneiro no Brasil.

*

(Parênteses: Quando Coelho Netto, acima, menciona, até qualificando de "admirável", o escritor francês Guy de Maupassant (1850-1893), lembrei-me de que tive acesso a uma ata de uma sociedade de geografia comercial da França onde se registrava que, em um dia dos anos 1870, o caxiense Aderson Ferro e o grande escritor francês Guy de Maupassant, amigo de Gustave Flaubert, estavam os dois, Aderson e Maupassant, tomando posse na dita sociedade. Aderson Ferro tinha saído de Caxias em setembro de 1877 para estudar “Arte Dentária” (Odontologia) em Paris e lá tornara-se membro da Sociedade Nacional de Geografia da França, e nesta condição estava na reunião com Maupassant e como este sendo admitido em uma sociedade mais específica da área, neste caso, Geografia Comercial. Também sobre Aderson Ferro descobri que, sim, e distintamente do que se registra em textos  -- poucos --  biográficos, ele voltou para o Maranhão após retornar da França, tendo montado consultório na Rua da Paz, em São Luís, como comprovam anúncios de sua atividade profissional publicados em jornais da capital maranhense naquela segunda metade do século 19 (anos 1880). Só depois, por motivos ainda insabidos, é que Aderson Ferro mudou-se para o Ceará, onde clinicou em Fortaleza e, depois, em diversas cidades do interior cearense, onde faleceu e permanece enterrado, em Baturité).

*

Portanto, tornando a Brito Broca: ele ampliou para “formação literária” o que o próprio Coelho Netto assumiu como livros que mais o “impressionaram”, além do que, de cara, o maranhense-caxiense ter dito que não “autores”, mas “pessoas” (negros, caboclos, brancos) é quem contribuiu para a formação do autor, desde logo “em criança” – “Até hoje sofro a influência do primeiro período da minha vida no sertão”. (Veja-se a obra “O Momento Literário”, de João do Rio – pseudônimo do jornalista, cronista, tradutor e teatrólogo carioca João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto[1881-1921] –, publicada pela Criar Edições – Curitiba, 2006).

Tornando à obra de Cervantes. Além de Josué Montello e Coelho Netto, o maranhense-ludovicense  Aluísio de Azevedo foi tocado pelo talento cervantino: na mesma introdução a “Dom Quixote”, Brito Broca consigna que, em busca de uma “revivescência indígena do herói de Cervantes”, uma espécie de Dom Quixote brasileiro  -- como à época já existiam Quixotes nas literaturas alemã, russa, francesa e italiana –, Aluísio de Azevedo “teve ideia semelhante, por volta de 1909, de fazer um Dom Quixote da fé, inspirado na figura de Antônio Conselheiro [...]”. A ideia aluisiana não se materializou...

*

A influência e/ou a presença de autores maranhenses nos diversos estratos da Literatura – universal, brasileira, regional – é matéria a ser consolidada e ampliada, tais e muitas são as menções, citações, dissertações, teses e outros trabalhos acadêmicos, além de livros, textos em jornais etc. produzidos por ou sobre nossos conterrâneos, Brasil adentro e mundão afora.

Um dia haverá uma decisão, farto apoio e a efetivação de um trabalho de pesquisa, coleta, documentação e disseminação de informações e trabalhos relacionados aos – ou de autoria de – talentosos maranhenses que contribuíram, e muito, para que nosso País se houvesse melhor, seja enquanto realidade para nós, seja como referência para outrem.

* EDMILSON SANCHES

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.