Oswaldino Ribeiro Marques nasceu em São Luís do Maranhão, em 17 de outubro de 1916, e faleceu em Brasília (DF), em 13 de maio de 2003. Abriu seu caminho a golpes de tenacidade e mercê de inquebrantável adesão aos valores da inteligência. “Se não fosse escritor, gostaria de ser matemático ou físico nuclear”, dizia convicto com as exigências que tinha consigo.
Ao falar-se de Oswaldino é bom que se diga qual foi o ponto de ligação que houve entre sua geração maranhense de 30, com os ecos da “Revolução de Arte Moderna de 22”, e é justamente sobre isso que o escritor Rossini Corrêa em seu belo livro “Atenas Brasileira – A Cultura Maranhense na Civilização Nacional”, Thesaurus Editora, Brasília, 2001, à pág. 187, nos diz: “O ambiente cultural ludovicense não foi contemporâneo do eixo construtor do Modernismo brasileiro, na década de 20: “os revoltosos assustam no Maranhão”, reconheceria Odylo Costa, filho. Sem movimentos, sem manifestos, sem revistas, sem articulação interativa e sem livro-marco de reconvenção estética inserto na moderna história literária do Brasil. São Luís, na realidade, ficou à revelia do itinerário imediato de expansão da mudança modernista em curso no país. São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, sim. Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, também. No Pará, menos. No Maranhão, não. Se alguns poucos sonharam em ensaiar a luta renhida, perderam a batalha que, em visão crítica, não vingou em terras gonçalvinas. O principal modernista maranhense, jovem da década de 20, foi Nunes Pereira, uma espécie de Raul Bopp fugindo do passadismo, que estava diante do seu mestre Mário de Andrade, em Natal, vindo de Belém, onde frequentara tertúlias peripatéticas. E, no Maranhão, nada de Nunes Pereira”.
Avesso às academias e a ciclos literários, Oswaldino Marques, não sei por que, cargas d’água, pertenceu ao “Cenáculo Graça Aranha”, ao lado de alguns dos seus mais legítimos companheiros da geração de 30, como Josué Montello, Franklin de Oliveira, Manuel Caetano Bandeira de Mello, Amorim Parga, José Erasmo Dias, Sebastião Corrêa, Paulo Nascimento Moraes, Ignácio Rangel e outros, “a buscar o sonhado caminho” apregoado pelos cânones do Modernismo de 22, o qual no Maranhão, como se viu, foi “febril e transitório, enquanto que, para o ideal de glória da mitológica tribo timbira, sempre a eternidade foram deusa e rainha sedutora”, como nestes versos do próprio Oswaldino Marques: “E sinto quanto mais contraditória / é a fortuna de minha realidade: / ter por órbita a vida transitória / e em torno a mim só ver eternidade”.
Não procuraram e nem acharam ideia modernista nenhuma. Sobre o “Cenáculo Graça Aranha”, é Josué Montello que nos diz: “Éramos românticos e não sabíamos. O Cenáculo não publicou livros, não promoveu conferências, não empossou nem enterrou ninguém. Na verdade, pensando bem, foi uma bela ficção. Cada um de seus membros fundadores tomou rumo próprio, ficando em São Luís ou dali saindo. Tão completa foi a sua extinção que dele não restou o livro de atas, nem o álbum de recortes. Apenas uma tabuleta”.
Em 1936, Oswaldino zarpa de navio pra o Rio de Janeiro, onde já lá estavam Montello, Franklin e Bandeira de Mello. Na velha capital, o mais tarde tradutor de Whitman, se torna um dos fundadores da União Nacional dos Estudantes (UNE), onde trabalhou como bibliotecário e tradutor, tendo sido um dos responsáveis pela divulgação da poesia moderna estadunidense no Brasil. Em 1965, mudou-se para Brasília, como servidor do Ministério da Educação, transferido do Rio de Janeiro. Por concursos, assumiu a cátedra de Teoria da Literatura na Universidade de Brasília (UnB). Com as implicações políticas no Brasil, o mestre Oswaldino, a trilhar pelos caminhos do marxismo, foi demitido do cargo, autoexilando-se nos Estados Unidos, onde foi professor visitante das literaturas portuguesa e brasileira, na Universidade de Madison, Wisconsin.
Algum tempo depois, em 1991, via anistia, foi reintegrado à UnB pelo reitor Cristovam Buarque. Oswaldino Marques era por temperamento retraído e viveu os últimos anos praticamente isolado em seu apartamento em Brasília, onde dedicava seus dias à leitura e a ouvir músicas. Quantas vezes, a seu convite, participei desses momentos silentes ao seu lado, entre clássicos e músicas de câmera de sua predileção, a degustar, por vezes, um delicioso “mingau de milho”, à moda maranhense, que, em outras plagas, chamam de “canjica”, preparado por Maria do Carmo, sua mulher. Infelizmente, Oswaldino se dizia ateu, mas não por isso, mas por outros, “caprichos”, deixou registrado em cartório, que não desejava qualquer tipo de cerimônia religiosa quando de seu sepultamento, nem discursos, e nem flores, e nem velas, o que foi seguido à risca por sua mulher e seus filhos, o gravador Igor Marques e o também escritor Ariel Marques.
Sintamos o quanto o Padre António Vieira tinha razão quando proferiu o seu famoso sermão a “Quinta Dominga da Quaresma” ou “Sermão das Mentiras”, Rossini Corrêa [Op. cit. p. 224], diz assim: “Tribo conflitada e desunida a maranhense, que, no passado, falava mal de si às escondidas, como Humberto de Campos a comentar livro de Coelho Netto, no “Diário Secreto”: “Recebi um livro de Coelho Netto. É um punhado de crônicas de jornal, em que seguem os lugares-comuns, se sucedem as expressões banais, os termos de gíria, as frases feitas, compondo páginas sem relevo, sem interesse, sem beleza, uma grande piedade, um grande dó...” [...] Atualmente, porém o duelo travado em terra estranha é público e notório, à faca peixeira, com fratura exposta, massa cerebral perdida, hemorragia desatada e de vísceras caídas por terra, como o servido em Brasília-Rio, por Oswaldino Marques e por Josué Montello. Combate, este, que inspirou ao primeiro a corrosiva e inédita produção poética, que substitui, em sua concisão, todo um banquete psicanalítico. Em: “Autoepitáfico”– “Oswaldino aqui jaz./ De vezo polêmico, / índole indomada. / Zero contumaz / na vida foi nada / nem mesmo acadêmico”.
O que Rossini Corrêa atiça acima esmiúço abaixo, como ilustração a este dedo de prosa, e para que o leitor entenda melhor essa “luta corporal” que em nada espantaria Ferreira Gullar: Oswaldino e Josué foram colegas no Liceu Maranhense por todo o curso de humanidades; tinham precisamente a mesma idade; ambos intelectuais de fina estirpe; Oswaldino foi “eminência parda” de Montello quando este exerceu a direção da Biblioteca Nacional, mas, infelizmente, um pelo outro nutria uma “rezinga figadal”, uma coisa talvez explicada pela “reencarnação”. Oswadino era terno e generoso em gestos e delicadezas, mas, quando se apoquentava, por qualquer coisa, perdia as estribeiras, sem medir consequências e sem economizar adjetivos, o mesmo acontecendo com Josué Montello, o que fazia dos dois, apesar de adversos, mais que semelhantes. Um belo dia, pela década de 80, um “Macunaíma” qualquer, à guisa de fuxico, o instigou em relação a um “disse me disse” que Josué Montello houvera verbalizado sobre sua pessoa, o que, na linguagem cibernética de hoje, seria traduzido como “fake news”. Pelo sim, pelo não, Oswaldino surtou com que ouvira do “herói sem nenhum caráter” e foi às pressas para o “Correio Brasilienze” onde abriu as ferramentas contra Josué, num artigo intitulado “Desmontele-se”, o que, imediatamente, o autor de “Os Tambores de São Luís” respondeu pelo “Jornal do Brasil” ao tradutor de Blake, num outro artigo, intitulado “Arquive-se”. Foi uma “batalha romanesca e ensaística” espetacular, o que me faz rir até hoje quando as leio; guardei esses artigos comigo, de duas páginas inteiras cada um, devidamente catalogados em hemeroteca; são duas preciosidades literárias, que em matéria de “insultos em alto estilo” nada existe semelhante em língua portuguesa, nem mesmo os terríveis epigramas trocados por Bocage e Caldas Barbosa na velha Arcádia Lusitana, ou as farpas trocadas entre Alexandre Herculano e seus “indesejados” colegas da Torre do Tombo. Uma maravilha de briga literária!
De sua extensa bibliografia, eis alguns livros e antologias de Oswaldino Marques: “Poemas quase dissolutos”, 1946; “Cantos de Walt Whitman”, 1946; “O poliedro e a rosa”, 1952; “Cravo bem temperado”, 1952; “Usina de sonho”, 1954; “Videntes e sonâmbulos”, 1955; “Poemas famosos da língua inglesa”, 1956; “A seta e o alvo”, 1957; “Ensaios escolhidos”, 1968; “O Laboratório Poético de Cassiano Ricardo”, 1976; “A dançarina e o horizonte”, 1977, “Livro de sonetos”, 1986.
“[...] Em seus poemas, onde a beleza formal jamais se afasta da substância, em seus ensaios críticos, onde a arguta percepção está informada do mais dignificante calor humano, em suas traduções exemplares, [William Blake, Walt Whitman, T.S. Eliot] onde a fidelidade ao espírito criador original não está contida pela inevitabilidade da redução, sendo antes recriações válidas e autônomas, o escritor maranhense oferece generosamente o melhor de si [...] “A sensualidade de nossos trópicos se torna evidente mesmo quando os temas são aparentemente intemporais e forâneos”, disse dele o amigo e editor Ênio Silveira.
Escutemo-lo, em seguida, em “A dançarina e o horizonte”: “Em luz resplandeceu minha palavra / e se fez sol interior, mental: / sob seu calor agora torno à lavra / dos campos da sintaxe e do real”.
Por fim, ouçamo-lo neste “Homo sum”, enfeixado em “Poemas quase dissolutos”: “Há nos meus ombros vestígios de asas, / Guardo zeloso uma rica herança de voos; / Não esqueci, de todo, os segredos da levitação, / E me vanglorio de flutuar ainda como leve paina no espaço! / Tem sua obscura razão este ingênuo amor pelas nuvens, / Esta infantil ternura pelas franzinas borboletas, / E o orgulho de atirar o rosto para as estrelas. / Mas, ai! apalpo no meu cóccix também uma cauda atrofiada, / Que em vão dissimulo e dissimulo com meu enganador manto celeste. / Besta e anjo — um meridiano me corta em zonas de luz e treva, / De um dos meus lados nasce a aurora, / O outro é a úlcera de onde jorra a noite. / Ai! Que desgraça ser o antípoda de si mesmo! / Viver se despenhando em violentas diagonais de contradições. / A mão pura e a impuras pendentes do mesmo tronco. / O olho cego e o são coexistindo na mesma face. / O lábio podre e o eterno modelando estranhas palavras híbridas”.
A última vez que conversei com Oswaldino Marques, não preciso quando, foi no gabinete em que dividia com Herberto Sales a direção do Instituto Nacional do Livro (INL) em Brasília. Tenho saudade de sua generosidade e de suas colocações discursivas, sempre em altíssimo nível. Ele foi, repito, um querido amigo e um escritor que honra a Literatura Brasileira!
* Fernando Braga, in “Conversas Vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.