Manoel Caetano Bandeira de Melo: Caxias (MA), 30 de julho de 1918-Rio de Janeiro, 8 de maio de 2008.
Há um confinamento mais que existencial entre a prosa de Nascimento Moraes e a poética de Manoel Caetano, foi o que me despertou a leitura do livro “Esferas Lineares”, de Nauro Machado, tão belo ensaísta quão poeta, a nortear-me com seu valioso instrumental, condições para que eu ratificasse nestes apontamentos ser José Nascimento Moraes, o velho, o maior polígrafo maranhense do século passado, [lê-se séc. XIX] e Manoel Caetano Bandeira de Melo, como é vezo ser do conhecimento de quem estuda e tem intimidade com a literatura, ser um dos maiores poetas brasileiros.
A época de Nascimento Moraes foi toda ela vivida no prumo do cientificismo de Darwin, e no historicismo de Spencer, o pai do Darwinismo Social, em contraponto ao pessimismo de Shopenhauer, filósofo da corrente irracionalista.
Na esteira dessa epistemologia, Manoel Caetano Bandeira de Melo seguiu a trilha do evolucionismo, fortificado pelo entusiasmo do velho mestre Nascimento. Abro aqui um parêntese para dizer que, talvez, esteja nesta caminhada a chave misteriosa da poesia de Caetano, trabalhada com os dois opostos, vida e morte, que o levaram à elaboração de imagens completamente desnudas ante o salvar-se e os estigmas em chamas, ante o bem e o mal, como resultados apurados do possível concreto na teoria do evolucionismo, por onde seguiu contrário ao princípio cristão do criacionismo.
No seu livro “A Neurose do Medo”, Nascimento nos revela a essência de uma consciência nascida da revolta de um homem tocado pela injustiça e ferido na sua sensibilidade pelos golpes do arbítrio, vez que tinha um caráter analítico de tendências dialéticas como se pode constatar no outro seu livro “Vencidos e Degenerados”, onde se vislumbram aqueles personagens dostoieviskianos, como os muitos encontrados em “Humilhados e Ofendidos”, no “Idiota”, no “Jogador” e em “Crime e Castigo”.
O cenário desse estudo romanceado de sociologia foi a nossa São Luís do passado, a Praça João Lisboa em particular, com cafés e boas livrarias, como se fosse uma cidade culta da Europa, onde Nascimento buscou o substrato social de seu tempo, para usá-lo em “Vencidos e Degenerados”, o irmão topofísico, em síntese, de “O Mulato”, de Aluízio Azevedo.
Nascimento foi realmente “Um Lutador” como diz o epíteto traçado ao longo de sua história, cujo emblema estende-se a dois dos seus filhos: Nadir Adelaide, educadora emérita, e Paulo Augusto, este, o autor imortal de “Aquarelas de Luz”.
Da eugenia professoral do velho lutador ainda tinham Raimundinho, Talita e Nascimento Moraes, o filho, este, ainda a carregar no seu bravo peito a angústia dos mártires na ressonância imortal do “Clamor da Hora Presente” que estremeceu a Geração de 45 com seu grito libertário.
A viagem estava contida no húmus de Manoel Caetano. Ouçamo-lo: “... As maiores viagens são as íntimas, / através dos países que imagino. / Das Cordilheiras d’alma, ainda que ínfimas, as estradas das estrelas descortino”.
Aticei o parental darwinista de Manoel Caetano com Nascimento Moraes, no conteúdo epistemológico da evolução das espécies que os dois defendiam. Esse mesmo confinamento dá-se na expectativa laboral da criação artística. Se em “Vencidos e Degenerados”, Nascimento traça à luz da sociologia seus personagens como se pinçados dos textos de Dostoievski, Manoel Caetano, no “Soneto de Díptico” revela a sedução dos sapos da morte com os dramáticos sortilégios de “O Corvo”, de Edgard Allan Poe, tenebrosos, sombrios e incandescentes.
Têm o “Soneto de Díptco”, também, a cadência rítmica sentida na nódoa maldita e singular de Augusto dos Anjos, único entre nós nessa modalidade simbólica. No “Soneto de Díptico”, ainda, o poeta inscreve o nome de seu pai, o magistrado Públio Bandeira de Melo naquela tábua primitiva com a intenção de fazer-lhe a oração final, já nos momentos em que a monja da morte lhe rodeava. Estes versos têm um corte puramente modernista e são trabalhados em forma fixa, o que me faz dizer que no gênero estão entre os mais belos e perfeitos da Língua Portuguesa: “São os sapos da morte que coaxam / Vieram buscar-me no alto do edifício / não sei como fugir ao malefício / dos sapos que me buscam e que me acham. / Para o salto mortal eles se agacham / os olhos saltam no gelado ofício / de paredes sem luz que não se racham / desabaremos pelo precipício / Percorrendo a torre natural / que rasga o horizonte invertido / navegando voltada para o fundo / aprisionado espaço pela mesma urna / me sentirei de novo protegido / contra esta sensação de ser imundo”.
Oswaldino Marques, professor de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), querido amigo, um dos maiores críticos brasileiros, colega de bancada no Liceu Maranhense de Caetano, deixou-nos essa sentença sobre sua poética: “Manoel Caetano faz uma empolgante exibição de sua mestria no domínio da traiçoeira forma fixa. Desde o mais rigoroso soneto canônico, sem desdenhar do molde inglês, até o que eu chamaria de soneto desintegrado, onde, como na música concreta, as palavras são mais unidades de uma montagem verbal do que condutos do fluxo discursivo, em que tudo confirma o acabado do mínimo formal do poeta”.
O nosso saudoso poeta e ensaísta Carlos Cunha, acende, num rasgo crítico dos mais luminosos, em seu livro “Lâmpadas do Sol”, esse facho sobre a poética de Caetano: “Na poética de Manoel Caetano Bandeira de Mello, à maneira clássica, ele estabelece uma conexão visceral entre os dois maiores termos universais, cantados e decantados permanentemente. O sentimento do amor para o poeta tem algo de trágico, conflituoso. Ele não enxerga outra perspectiva que não sejam os conflitos que desencadeiam o amor. A partir de tal angústia que lhe é quase imanente, orgânica, o escritor atinge outras emoções graves e sinistras, percorrendo a mesma trilha que o conduz a apreender à vida”.
Por fim, Carlos Cunha, o fantástico declamador dos nossos saraus e madrigais, conclui: “Manoel Caetano Bandeira de Mello, ao lado de indiscutíveis dotes intrínsecos, construiu uma cultura humanística, mais particularmente poética, nas fontes perenes dos escritores clássicos”.
Épica e romântica, metafísica e mística, a poesia de Manoel Caetano personifica-se por uma forma individualizada, com uma grande carga de signos e símbolos a conduzi-la para um subjetivismo dentro daquela estilística hermética de que “a palavra sozinha inventa uma realidade”, como defende o poeta e crítico francês Marlamé.
Em “Tríptico”, creio que, à maneira de um painel devocional, contém-se num poema-balada e vale-se do emprego da metalinguagem o que lhe dar força, melodia e, sobretudo, uma elegante e fina essência verbal, onde existe aquela síntese em que Carlos Drummond de Andrade diz que “as palavras são puras, largas, autênticas, indevassáveis”. Ouçamo-lo: “O homem e sua essência / No corpo da mulher. / Como não amar, amada, / esta língua em que tu falas? / Palavra nossa que estás na terra, tanto buscada, quão pouco achada”. Manoel Caetano, aqui, faz-me lembrar à moda de Thomas Mann que as coisas mais belas desta vida são “os seios da mulher amada e o cérebro do pensador”.
O poeta americano T.S. Eliot, a exercer uma influência e um fascínio em todos nós, benditos pela poesia, ascendeu em Manoel Caetano, como não poderia ser diferente, seu ânimo, quer nas metáforas, nos paradoxos, nas antíteses, nas afirmações abstratas, quer na tensão rítmica, principalmente quando Caetano se apega a visões sombrias a respeito da vida e da morte, vereda já trilhada por Eliot, assim, considerada o reflexo poético do “Ulisses”, de James Joyce.
A isso discorremos, para dizer que, tanto o autor de “Os homens ocos”, quanto Caetano, têm empatia intelectual pelas alegorias da “Divina Comédia”, por Beatriz, principalmente. Nessa epopeia Caetano incursionou por toda sua poética. Sob o olhar dantesco, diz o crítico Haroldo Bruno: “(...) Inquietante pela fusão de elementos sensualistas e de carga ideativa ou sublimadora do real, de paixões terrenas e apelos de evasão, ele quer constituir-se, nos limites de nosso tempo, de nosso espaço cultural, numa espécie de reflexo da divina comédia do século. Projeto ambicioso, mas que representa a intencionalidade de todo poema que procura traduzir o quadro objetivo, em função de um pensamento voltado para os signos permanentes da estada do homem no mundo”.
Caetano sabia como poucos que a poesia é a maior mágica da comunicabilidade entre palavras e ideias, entre valores sonoros representativos de amplitudes emotivas que transcendem as possibilidades dos meios de transverbalização, como também sabia que a poesia é a mais autêntica orgia do homem, e que está na razão de sua emoção exaltante, mesmo sendo transitório, como o sonho de uma doutrina, e uma criação divina.
Foi por isso que Deus quis que Manoel Caetano viesse ao mundo no galope dessa “Humana Promessa”, para que ele cumprisse com dignidade e competência o roteiro de sua “Viagem Humana”.
* Fernando Braga, in jornal “O Estado do Maranhão’, São Luís, 14/12/08, originais in “Conversas Vadias”, antologia de textos do autor.