Rainer Maria Rilke um dos escritores mais lidos de língua alemã foi vastamente traduzido no Brasil, tanto em verso como em prosa; nesta, encontra-se “Cartas a um jovem poeta”, endereçadas ao jovem Franz Kappus – aprendiz de poeta –, (a correspondência com a intelectual Lou Andreas-Salomé, um dos seus grandes amores, responsável pela mudança de seu nome de René para Rainer, como as “Cartas sobre Cézanne”, trocadas com a artista plástica Clara Rilke, sua terna esposa). E mais, dentre estas, ainda, Manuel Bandeira como na versão “Torso arcaico de Apolo”, ou de Cecília Meireles para “A canção de amor e de morte – estandarte Cristóvão Rilke”, ou várias versões feitas por Augusto de Campos, como a “Coletânea de vinte poemas de Rilke”, agora em versos.
Apesar dos caminhos tomados por Rainer Maria Rilke, como “o poeta do inefável”, das “legiões dos anjos” para quem se dirige em “Elegias de Duíno”, ou com a pressão do olhar em que descreve a pantera ou a dançarina espanhola em “Novos Poemas”, que tanto encantou João Cabral de Melo Neto... Teve grande penetração no Brasil, chegando a formar uma espécie de “rilkeanismo na geração brasileira de 45”; no Maranhão, em particular, a geração de 60 embebida pelos métodos teóricos e artísticos da de 30, foi, em José Maria Nascimento que essa adjetivação atingiu em cheio, com a temática de “Oferenda aos lares”, frontalmente no contexto de seu livro”‘Silêncio em Família”: “O não ter Natal / e do Natal a alegria tão-somente / de saber-se hoje uma criança, / assim sentada, / a conferir estrelas entre um templo e um sobrado”.
Aqui se vê, claramente, “o aspecto metafísico elaborado com uma visão pessoal da religião nas histórias do Bom Deus; a valorização do aprendizado do olhar sobre a superfície das coisas, teorizada também em “Rodin”, livro que reúne dois ensaios sobre o escultor francês de quem o autor chegou a ser secretário em Paris e a casar-se depois com uma aluna do grande mestre (Clara que lhe deu, mais tarde, uma única filha, Ruth).
Em “O Livro da Peregrinação”, segunda parte de “O Livro das Horas”, que, assim como o “Livro da Vida Monástica”, é denominado pelo pressentimento de um Deus ainda por vir, enfeixa versos de um teor lírico muito grande, e talvez, por isso, inconscientemente, leva o poeta José Maria a apegar-se a uma espécie de judaísmo, talvez levado pela influência onírica de José Erasmo Dias, o judeu dos Apicuns que, assim, como “O Livro da Vida Monástica”, é dominado pelo pressentimento de um Deus ainda por vir, enfeixa versos de um teor lírico muito grande, o qual oferece ao imortal autor de “Páginas de Crítica”: “Noturnos doloridos finos sons / no ar carregado em verde cruz / Vibram melancólicos pistons / à rósea penumbra da meia-luz...” Ou ainda: “Agora o corpo assim frio exposto / (herança de um sonho estagnado) / pouco reflete da beleza no rosto / terno e triste como a canção ao lado...”
Diz Franklin de Oliveira, um dos maiores críticos brasileiros de todos os tempos, que a altíssima poesia de Rilke, uma das mais gloriosas do nosso século, se lhe serviu de instrumento de fixação da hora perplexa na face dos homens; também ele a usou como veículo de penetração no núcleo mais recôndito de tudo que está aquém e além do homem... E José Maria Nascimento começa por saudar o poeta em sua elegia, enfeixada em sua belíssima “Antologia Poética” a merecer lugar de destaque no Cancioneiro Brasileiro, por ser um livro bonito e por conter a beleza da alma do poeta maranhense: “Como se de tudo só a dor lhe resguardasse, / e a solidão costumeira fosse a sua graça; / e todo o coração nas trevas se iluminasse / ao impacto da luz do sol contra a vidraça”.
Sabe-se, contudo, que Rilke, nascido em Praga, a eslava cidade barroca dos mergulhadores do obscuro, dentre eles Franz Kafka, de lá observou a matéria-prima de sua criação lírica, tendo, a meu ver, em Nascimento, um dos seus grandes seguidores, entre nós, em língua portuguesa, vez que o poeta maranhense é um lírico inato até pela sua personalíssima condição de garimpeiro da linguística, a fazer dançar a bateia para apurar os rubis que se liquefazem no vinho e na fermentação de sua própria vida. E continua... “Como se naquela tarde alguma outra lembrança / flutuasse por sobre os móveis encardidos; / e algo retornasse junto aos dias de criança, / despertando alegrias e tormentos dormidos...”
Ao exercitar a poesia, não apenas com angústia e enigmas oníricos, sem o ar de pesadelo que se expande em tudo, mas com um manejo conceitual de originalidade a duelar nas fronteiras da expressão, como prefere Oswaldino Marques, José Maria Nascimento sabe que a poesia não se prende apenas ao pensamento ou às preces de litania, e prossegue a cantar sua elegia ao poeta de “Eu tenho mortos”: “Como se um amigo estivesse sempre ao seu lado, / testemunha das cismas que a madrugada oferta; / e, de súbito o alvorecer ficasse imobilizado / em homenagem à penúltima e sagrada hora incerta”.
Depois do Impressionismo alemão, nenhum outro movimento teve tão grande relevância de consequências estéticas como o Simbolismo, e Rener Maria Rilke só se individualiza com essa nova estética, quando, então, aparece “O livro das imagens...” E Nascimento conclui: “Como se na intimidade de um longo sonho falho, / o corpo revelasse a sua história num momento; / e na aridez dessa existência houvesse orvalho, / cobrindo as folhas e os frutos do pensamento”.
Já que, se Rilke se dizia uma ilha... Nascimento, em “Naufrágio da Ilha”, completa: “O rio Ingaúra está seco, / morreram as lavadeiras”.
Em “Visões”, o lirismo de José Maria Nascimento – o poeta do Ribeirão –, chega ao cume de um soluço que adormece: “Da juventude aquele olhar ficou, / novas paixões edificando sonhos, / tantas moedas se partiram ao meio, / sobraram pedras sobre mágoas cruas”.
Por fim, o poeta de “Harmonia do Conflito” se confessa arrependido, já que não bebe [nunca mais] nem cachaça de Oratório: “... lançou-me contra as ruínas / das mais tristes boêmias; / foi a dose dupla de minha queda /... contida na bilha da vergonha”.
Não tenhas vergonha, poeta, do vinho virgem bebido, porque, voltando um pouco no tempo, o inconvencional Rimbaud, em “Uma Temporada no Inferno”, confessa “sonhos e terras distantes, desejo de solidão e sede e conhecimento, o passado ancestral e a busca pelo desconhecido (...) Dele emerge o homem rebelde e aventureiro, vivendo – como dizia Verlaine “a própria vida inimitável”: “Jadis, si me souviens biens, ma vie était um festin oú s’ouvraiient tous lês coeurs, ou tous les vins coulaient”. (Antes, se lembro bem, minha vida era um festim em que se abriam todos os corações, todos os vinhos corriam).
O epitáfio de Rilke, escrito por ele mesmo, diz: “Rosa, ó pura contradição, alegria, alegria / de ser o sonho de ninguém sob tantas pálpebras”.
O do poeta José Maria Nascimento, a cantar o verso, esse seu estranho amigo, bem que poderia ser este, de aqui a mil anos como diria Baudelaire: “Tigre faminto de termos originais / pantera da minha jovialidade; / ele o solitário verso / banhou-se nas minhas lágrimas / comeu todo o sal do meu batismo”.
Todas as grandes vozes poéticas do nosso tempo, desde T.S. Eliot a Fernando Pessoa, tiveram seus ecos apocalípticos em “Terra Devastada”. Uma espécie de código, de estrondo!
Mas o grito de José Maria Nascimento transcende como se este fosse: “Quem, se eu gritasse, entre os anjos me ouviria?”
* Fernando Braga, in “Caderno Alternativo”, do Jornal “O Estado do Maranhão”, 10, de outubro de 2007; in “Conversas Vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.