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Nenhum livro de receitas substitui um prato de comida*

– 16 de outubro: Dia da Alimentação e Dia do Engenheiro de Alimentos

O CARDÁPIO DA FOME

– Devido à extrema pobreza, até hoje há famílias brasileiras pedindo a Deus o pão que o diabo amassou.

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“Eu vi a cara da fome
na seca de vinte e um.
Oi, bicha da cara feia,
só mata a gente em jejum!”
(Um cantador de Bacabal/MA)

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Neste 2020, completaram-se 45 anos.

Em agosto de 1975, após exato um ano de iniciado, foi encerrado o Estudo Nacional de Despesa Familiar (Endef), a maior pesquisa já realizada no Brasil sobre o que consomem as famílias brasileiras. O Endef teve o apoio da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Coordenados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 1.100 pesquisadores caíram em campo e se tornaram testemunhas oculares da luta desigual pela sobrevivência, desenvolvida por nada menos de 55 mil famílias pesquisadas em todo o Brasil.

O que esses pesquisadores presenciaram não está em gibi nenhum. Por isso, a pesquisa foi guardada a sete chaves por diversos anos. Tanto o IBGE quanto os pesquisadores do Endef mantiveram-se num silêncio compreensivelmente covarde: a ditadura, a censura, a repressão, a desconsideração às pesquisas do gênero, a banalização da miséria e da fome em todo o país serviram de lacre na boca de quantos, “in loco”, sofreram com a situação de penúria de milhares de brasileiros.

Em fins de 1985, dez anos depois, alguns pesquisadores daquela época retornaram aos mesmos locais de moradia de seus entrevistados. E a situação não havia mudado; isto é, estava pior que antes. É de perguntar-se como aqueles brasileiros ainda sobreviviam, pois o que eles comem – quando têm o que comer – está, como registrava a Imprensa na época, “abaixo do que a Organização Mundial de Saúde julga possível para que um ser humano continue vivo”.

Eu sei, leitor: Depois de um razoável café da manhã e, depois, um bom almoço, nós talvez não estejamos mais preocupados com isso. A própria efemeridade do jornal (que no dia seguinte será substituído por outro), a reciclagem das notícias (que amanhã também serão substituídas por diversos meios de comunicação) contribuem para que nos preocupemos menos constantemente com tão indigesto/indigente assunto. Também se pode dizer que: “Não sou culpado nem sou eu quem resolverá esses problemas”. Pelo menos por enquanto, essa negação e transferência de responsabilidade fica servindo para nosso particular descargo de consciência.

Então, passemos a bola para os políticos com mandato. Não são eles os legítimos representantes do povo? E por que, então, os políticos nada fazem? Por que continuam a encher o pobre só com discursos?

Quem tem fome alimenta-se de substância, não de sentido.

Governantes e políticos, o que lhes falta para mudarem para melhor essa situação? Falta-lhes sentimento no coração (como quer um romântico) ou, em verdade, falta-lhes vergonha na cara (como queria Capistrano de Abreu em sua “constituição” de dois artigos)?

Novos tempos, Nova República, novos governos... Velha fome, antiga miséria. Foi Marat, revolucionário francês, quem disse: “De que adianta a liberdade política para quem não tem o que comer? Ela só tem valor para teóricos e políticos ambiciosos”.

Mas o que fazer para que os políticos mudem sua própria mentalidade? Como fazê-los entender que eles, políticos que são, devem comportar-se como servidores e não como patrões do povo?

À maneira de James Clarke, pode-se dizer que, infelizmente para nós, nossos políticos, cheios de interesses individuais e particulares, só pensam na eleição seguinte... enquanto os verdadeiros políticos, os que carregam interesses públicos e coletivos, pensam na geração seguinte.

Não, este texto não é um libelo contra os políticos, mas dá vontade de repetir: “Basta de políticos! O mundo precisa é de pessoas honestas”.

Não serão os eleitores a dar respostas ao problema da fome. Afinal, é para encontrar soluções que existem políticos, governantes e cabeças pensantes, todos regiamente remunerados pelo assalto aos salários – chamado, eufemisticamente, de impostos.

Seria interessante ver esses políticos e governantes embarcarem no trem da tristeza rumo ao Brasil que não consta dos programas, folhetos e guias coloridos das agências de turismo. Ver a miséria em preto e branco.

“COMIDAS TÍPICAS” – Seria interessante vê-los provar das “comidas típicas” postas na mesa daqueles brasileiros iguais a eles. Em Alvorada, no Rio Grande do Sul, partilhariam as cascas de batata com que se alimentam certas famílias.

Na favela de Pirambu, em Fortaleza (Ceará), dividiriam água com sal e miúdos siris.

Em Porto Feliz (São Paulo), repartiriam ratos no almoço. (Frisar bem, conforme registrado no relatório do IBGE, que “são ratos, e não preás”.)

Em Mossâmedes, Goiás, deglutiriam telhas.

Também no Ceará, poderiam mastigar “barro, carvão, sabão e outras coisas”.

Em Volta Redonda (Rio de Janeiro), algo mais suculento: lavagem de porco. Ainda no Estado do Rio, um complemento à comida provada em Alvorada: às cascas de batata juntar-se-iam... folhas de batata.

Em Santa Catarina, miolo de xaxim.

No Paraná, consoante com a região, folhas de café (que, segundo as anotações dos pesquisadores, “têm gosto de torresmo”).

Em terras mineiras, mais comida “natural”: talos e folhas de abóboras e chuchus.

Em Tucunduva, Caucaia, no Ceará, “uma farinhazinha, um açuquinha na boca” e só.

Em outras regiões do país (inclusive em Brasília), seriam provados pratos típicos de... lixo e calangos.

E degustariam até mesmo (oh vergonha das vergonhas!)... fezes humanas.

Por aí vão os diversos tipos de “comida” devidamente anotados pelo IBGE e que são o prato de resistência de milhares de famílias brasileiras no Brasil inteiro. Que vergonha!

Certamente menos gordos, os políticos e governantes que voltassem vivos desse itinerário da fome teriam elementos de sobra e justificados motivos para repensarem uma séria política de alimentação e justiça social neste país.

Urge a paralisação dos discursos meramente partidários, laudatórios, louvaminheiros.

Urge, pois, uma ação – antes que ruja uma reação.

De qualquer forma, vergonha não é se alimentar (!) de telhas, ratos, folhas e fezes. Vergonhosa, imoral, obscena é a incapacidade política, a indecência administrativa, para transformar o panorama da fome do Brasil.

Este país não pode mudar enquanto grande parte de seu povo continuar na mesma.

O cruel quadro da fome, de cores fortes e reais, exposto pela pesquisa do IBGE há 45 anos, ainda perdura para muitos brasileiros Brasil adentro, e permite-nos dizer, num infeliz trocadilho, que, devido à extrema pobreza, até hoje há famílias pedindo a Deus o pão que o diabo amassou.

E que seja (satis)feita a sua vontade.

Amém.

* EDMILSON SANCHES

(escrito e publicado originalmente na década de 1980).