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Prazeres e pecados da carne*

Antes de, como se diz, cair de boca, a gente, como se diz, come com os olhos.

E ali estávamos ela e eu.

No meu apartamento de solteiro – vá lá: divorciado, desquitado, descasado, sozinho mas não solitário –, eu a ajeitei de frente para mim, do modo mais próprio para aquela parte do ato. Ela aceitava, passiva, inerte: na sua mudez e nudez sabia que não podia fazer nada em relação ao meu paradoxal estado de desejo somado a paciência e sofreguidão. Ela só podia sujeitar-se a tudo o que eu fizesse com ela. Sujeitar-se e servir-me.

Assim, macho alfa, senhor absoluto daquele instante, com as mãos buliçosas e bolinantes, toquei com cuidado, cobiça, cupidez a textura agradável daquela carne fêmea ali posta à minha disposição. Olhei-a bem de perto, mais de perto, bem de pertinho, a ponto de sentir-lhe o hálito cárneo. Parecia latejar.

Nesse reconhecimento “territorial”, carnal, observei sua cor, a parte externa tendente ao bronzeado – na verdade, como define a expressão, “cor de carne”, ou da pele que a recobre. Essa coloração brônzea, de um amorenado dourado, contrastava com o róseo forte de sua parte interna. A intimidade é vermelha – “encarnada”, atesta a palavra, mistura de carne e cor.

Depois dessas preliminares de olhares, odores e toques, passados os momentos de apetite visual, a fome, a gula e a busca do prazer derradeiro propriamente ditos se estabelecem e, em sua quase irracionalidade – pura paixão e fisiologia –, fazem a boca se projetar ávida, voraz, por sobre a carne intumescida, tépida, que não rejeita os movimentos das mãos que a tocam, dos lábios que a contornam, da língua que a lambe, dos dentes que a mordem e mordiscam. Aquela carne responde liberando seu líquido que se mistura ao líquido de minha boca.

Num gesto primitivo, canibal, não me contenho e corto a carne com os dentes e sinto todo o seu sabor e aroma descendo por minhas entranhas.

Enfim, carne na carne.

Após algum tempo, o corpo farto e os sentidos plenos agora pedem um instante de repouso.

Até a próxima vez em que um novo filé for servido na hora sagrada do almoço.

Hora de carne e fome, pecado e desejo.

Hora sacra, instante profano.

* EDMILSON SANCHES