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Afinal, Rogaciano Leite é egipciense ou itapetinense?*

Rogaciano Leite

O Rio Pajeú passa por diversos municípios no Estado de Pernambuco. Só na microrregião do Pajeú, são uns 17. Mal comparando, o rio parece um espesso fio líquido (e incerto, já que sazonal) unindo cidades como se fossem contas ou camândulas em um imenso terço ou rosário.

Praticamente bem no centro do Estado, na parte norte, na divisa com a Paraíba, está o município de Flores, por onde, neste leriado, começamos a construir a resposta para a pergunta-título deste texto.

Flores é velha que nem pé de serra. O início de sua história remonta ao século XVI, lá pelas metades do ano de 1589. Nesse ano, chegou a uma aldeia, nas terras da hoje Flores, pelo Rio Pajeú, uma expedição de portugueses e índios escravizados, uma das muitas expedições que o administrador colonial lusitano Garcia d’Ávila enviava para colonizar regiões e ampliar seu latifúndio, que chegou a 800.000 quilômetros quadrados de área, 40 vezes o tamanho de um país como Israel.

O que a expedição luso-indígena não contava é que, quando ela aportou no hoje Alto das Flores, tiveram todos os expedicionários aprisionados pelos índios tapuias, que, exatamente naquele dia, estavam em festas, homenageando um chefe índio da aldeia da Baixa Verde, nas terras do hoje município de Triunfo, dali das vizinhanças, digamos assim.

Os expedicionários foram mortos, exceto duas meninas, cuidadas pelos tapuias como pequenas deusas. Aracê e Moema, foram os nomes indígenas que as meninas receberam. As meninas ensinaram a língua portuguesa para índios e os ajudaram a ser mais tolerantes com os ditos brancos. Cerca de 15 anos depois, em 1603, apareceu nova expedição, mas aí o tratamento foi outro. Novas e melhores habitações foram construídas – transferência de tecnologia...

E a história de Flores se foi fazendo... Em 1783, era oficialmente distrito. Em 1810, vila – extinta em 1851 e recriada em 1858. E, finalmente, em 1º de julho (dia e mês em que o poeta e jornalista Rogaciano Leite nasceu...) de 1909, Flores ganha sua autonomia, transformando-se em município e cidade-sede.

Igreja Matriz de São José, em São José do Egito

Como diz o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão do governo federal, “o município de Flores, outrora, compreendia uma vasta região que iniciava onde hoje se situa o município de São José do Egito, indo até o atual município de Tacaratu”.

Pois bem. Todos que tentam puxar a naturalidade de Rogaciano Leite para São José do Egito ou para Itapetim saibam uma coisa: as terras de diversos municípios aí na região são endodivisões (divisões internas), são áreas, nacos, pedaços dos chãos da antiga Flores.

E como é que a naturalidade (local de nascimento) de Rogaciano Bezerra Leite entra na história?

Você conhece o provérbio que diz que “o futuro a Deus pertence”. Uma pessoa que nasce e é registrada no seu município não tem qualquer condição de saber se, mais tarde, tempos depois, anos, décadas ou séculos adiante o território de um município vai ser desmembrado.

Digamos, só por hipótese, que a menina Aracê, a mais velha daquelas duas que os índios adotaram na antiga terra de Flores, em 1589, transformou-se em uma escritora famosa. Ainda no terreno da hipótese, Aracê foi registrada como filha de Flores – portanto, era florense. Flores é município independente desde 26 de maio de 1858, confirmado por lei de 3 de agosto de 1892.

Igreja Matriz de São Pedro, em Itapetim

Em 1º de julho de 1909, Afogados de Ingazeira, por sua vez, torna-se município (era distrito desde 1836), desmembrado do território de Flores. Digamos que as terras de Aracê estivessem na parte que ficou para o município de Afogados de Ingazeira. E agora, o registro de nascimento de Aracê tem de ser mudado, para substituir Flores por Afogados de Ingazeira?

Mas a história anda... São José do Egito (que era distrito desde 21 de março de 1872) torna-se município independente, desmembrado de Afogados de Ingazeira. As terras de Aracê ficaram com São José do Egito. E aí? Nossa personagem Aracê, que inicialmente era de Flores, depois se mudou para Afogados de Ingazeira, agora terá de registrar-se como filha de São José do Egito...

Por fim, das terras de São José do Egito sai a área territorial de Itapetim, transformado em município em 29 de dezembro de 1953... e a parte do antigo território de Aracê ficou com Itapetim. Afinal, qual a naturalidade dessa moça Aracê? Ela foi transformada em trânsfuga de sua própria terra, com um novo registro de nascimento a cada desmembramento territorial, a cada divisão municipal que inclua o pedaço de chão onde ela se criou...

Percebe-se que isso não faz sentido. Do mesmo modo com Rogaciano Leite. E se o Sítio Cacimba Nova, o chão onde ele nasceu viesse a compor o território de um novo município, desmembrado de Itapetim, qual seria a cidade de nascimento de Rogaciano? E quem assegura que o futuro não reserve outras divisões municipais? Basta ver o tamanho das comunas, cidades ou o que corresponda a município em diversos países da Europa – lugares pequenos com pouquíssimos milhares, senão centenas, de moradores e uns poucos quilômetros de área.

Acham que isso é impossível? Nasci na mesma terra de Gonçalves Dias e Coelho Netto: Caxias, Maranhão. O sítio onde Gonçalves Dias nasceu atualmente faz parte de outro município, ali vizinho a Caxias. Agora, imagine se o pai de Gonçalves Dias, um português, para evitar o clima “pesado” contra os lusitanos, tivesse ido com a esposa grávida para as matas do hoje município maranhense de Itinga do Maranhão, cujas terras integravam o território da antiga Caxias. Ora, Itinga saiu de Açailândia, que saiu de Imperatriz, que saiu de Grajaú, que saiu de Pastos Bons, que saiu de Caxias. Então, o poeta Gonçalves Dias, que nascera caxiense, teria de mudar a certidão e tornar-se pastos-bonense, depois grajauense, depois imperatrizense, depois açailandense e, por fim, itinguense?

São José do Egito, embaixo, à esquerda, e Itapetim, no alto, à direita: pontos de união, ligadas por rio, rodovia

Decididamente, não faz sentido. Rogaciano Leite nasceu em 1920, quando a terra em que respirou pela primeira vez era parte do município de São José do Egito, e assim deve constar de sua certidão de nascimento. Quando Rogaciano morreu no Rio de Janeiro (RJ), em 7 de outubro de 1969, Itapetim, tornado município em 29 de dezembro de 1953, tinha completado 16 anos...

Câmara Cascudo, em sua apresentação ao livro “Carne e Alma”, de Rogaciano Leite, publicado em 1950, diz, com data de 10 de junho de 1948, que “Rogaciano revive as florestas de Gonçalves Dias”. Pois a menção ao meu conterrâneo caxiense lembra-me do quanto Gonçalves Dias, em seus poemas, cantou Caxias. Se não bastasse a certidão de nascimento, poemas de Gonçalves Dias atestariam sua naturalidade...

Assim também com Rogaciano Leite. Ele cantou a sua terra. No longo “Poema de Minha Terra”, depois de declarar que “nasceu num recanto do meu sertão – que amo tanto!”, que se criou “lá na Fazenda”, Rogaciano não se faz de rogado e, como em uma rogação, ao final da poesia, data: “São José do Egito – Pernambuco, 1943”. Seis anos antes, no poema “Uma Noite na Fazenda”, dedicado a seu irmão José Bezerra Leite, Rogaciano datava assim: “Cacimba Nova – São José do Egito, 1937”. Dois anos depois, compusera “Flamboyant (Enfermo)”, para esta árvore, que morria; e na datação: “Cacimba Nova – São José do Egito, 1939”. Aqui, Rogaciano estava com 19 anos e encerra o poema, um soneto decassilábico, escrevendo que ia “morrer, talvez, com vinte e dois”.

Na “Canção de Agradecimento”, para pessoas de Santos (SP), que “concorreram para a publicação” de seu livro “Carne e Alma”, Rogaciano Leite, em décimas heptassílabas (estrofes de dez versos de sete sílabas) diz de onde vem e quem é no primeiro verso: “Venho de longe [...]”. E nas linhas iniciais da terceira estrofe: “Sou José: numa cilada / Venderam-me a Faraó!”

Essa “Canção”, datada de 13 de novembro de 1950, uma segunda-feira, não consta do livro “Carne e Alma”. Foi publicada em uma edição de domingo, 19 de novembro de 1950, do jornal “A Tribuna”, de Santos. Página inteira. Convém anotar que poesia, no mais das vezes, é uma forma “diferenciada” de dizer certas coisas. Na “Canção do Agradecimento”, os dois primeiros versos da terceira estrofe – “Sou José: numa cilada / Venderam-me a Faraó!” – também podem se referir à cidade de nascimento de Rogaciano Leite. O antropônimo “José” e o título “Faraó” podem estar evocando uma das origens do politônimo (nome de cidade) “São José do Egito”. A imagem de São José, que veio para a cidade, apresentava o santo calçado com botas, o que seria um costume do Egito. A estória pegou e terminou compondo o nome do município. Ainda por cima, classificaram-se na cidade três “dinastias” de poetas (“faraós”) nascidos em São José do Egito: a primeira seria a de Antônio Marinho do Nascimento (5/4/1887-29/9/1940), chamado “A Águia do Sertão” e considerado um dos maiores cantadores de todos os tempos; a segunda, de Rogaciano; e a terceira, de Lourival Batista Patriota, o Louro do Pajeú (6/1/1915-5/12/1992), considerado “O Rei do Trocadilho” e também um dos mais famosos poetas populares do Brasil. Todos os três “faraós” nascidos em terras de São José do Egito. Segundo o “site” da Prefeitura de São José do Egito, “esses homens, com seu lirismo, ajudaram a disseminar as sementes da poesia pelo mundo”.

Enfim, do ponto de vista legal e, sobretudo, poético-literário-cultural, Rogaciano Bezerra Leite nasceu em território do município de São José do Egito, 33 anos antes da emancipação de Itapetim. Como, pelo que se sabe, Rogaciano não tirou segunda via de seu registro de nascimento entre 1953 e 1969, quando morreu, nasceu, viveu e faleceu como egipciense.

No mundo do Direito, há expressões como “verdade registral”, “verdade biológica” e “verdade socioafetiva”. Eu acrescento outras duas: “verdade histórico-cultural” e “verdade geopolítica”. O Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), diz, em seu Artigo 1.604, que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. Forçando a interpretação (já que a Lei é ela e a interpretação dela), se o registro de Rogaciano o põe como criança nascida em São José do Egito, daqui ele é. Talvez, se ele perdesse sua certidão e fosse tirar uma segunda via após a autonomia de Itapetim, ele sairia do cartório com um registro dando-o como itapetinense, em razão de o lugar onde nasceu agora pertencer ao território de Itapetim. Mas não foi o caso.

Vencida a “verdade registral”, temos a “verdade biológica”: Rogaciano, quando nasceu (e nascer é ato biológico), nasceu em terras do município de São José do Egito.

Quanto à “verdade socioafetiva”, até os versos (como listados acima) e, quem sabe, outros textos rogacianianos mencionam São José do Egito com os elementos básicos de formação de vida de uma criança, de um menino, de um adolescente... O maior registro de nascimento é esse que se vê e não se vê na alma do ser nativo, nascidiço.

A “verdade histórico-cultural” tem muito da “verdade socioafetiva”: são os elementos da terra natal identificáveis na obra do escritor.

E a “verdade geopolítica” é a que contempla Itapetim, antigo distrito de São Pedro das Lajes, depois Itapetininga até a redução para o atual topônimo: por um ato político-administrativo, legal, o antigo distrito de Itapetim é emancipado e seu território, desmembrado do município-pai (São José do Egito), vem com o pedaço de chão (geografia) em que Rogaciano Bezerra Leite nasceu.

A “verdade geopolítica” está ao lado de Itapetim. Por exemplo: Se um turista vai a São José do Egito e diz que quer conhecer o lugar onde Rogaciano nasceu... tem de ir até Itapetim. Ponto. É a “verdade geopolítica” (um pedaço de terra que, por um ato político de redivisão municipal, passou a fazer parte da geografia do novo ente federativo municipal). Agora, se um turista for a Itapetim e pedir para ver uma cópia da certidão de nascimento... ter-se-á de apresentar aquela, e única, que foi assentada no cartório da velha São José do Egito...

Do ponto de vista legal, pode haver dupla (ou tripla etc.) nacionalidade. Mas não se sabe de dupla naturalidade. Pois a naturalidade é uma questão de vida, e a nacionalidade, uma questão de viver. Em termos de vida, só se nasce uma vez – pelo menos cada um de nós, aqui na Terra. Em termos de viver, é uma questão de modo – “modus vivendi”, uns tempos, está em um país; outros tempos, naqueloutro...).

Enfim, não se pode sair por aí alterando a certidão de nascimento de todo filho ilustre que nasceu em lugares que foram assumidos por novos municípios. Se olharmos detidamente a genealogia dos Estados e de muitos municípios, constatar-se-á o quanto em muitos deles ocorreram endodivisões, bipartições, tripartições, multipartições. Um nascituro e seus pais não têm controle sobre isso. A cidade de quem nasce é a cidade onde ele nasceu. Claro, há a possibilidade legal de, por meio da Justiça, adequar-se a uma nova realidade geopolítica, desde que isso seja uma expressão de vontade do indivíduo ou uma determinação judicial mandatória, imperativa, obrigatória.

Quem compulsar e pesquisar biografias poderá, sem muito esforço, com algumas averiguações, confirmar diversas situações de pessoas ilustres que nasceram em um determinado lugar que, depois, passou a território de outro – e nem por isso se está deblaterando ou requerendo a naturalidade legal forçada dos filhos ilustres. Outros tempos e outros grandes filhos poderão nascer nos dias que hão de vir...

Portanto, em uma só oração, ou frase: Rogaciano Bezerra Leite é egipciense nascido em terras atualmente itapetinenses.

A propósito, o IBGE grafa “egipsiense”, o que é evidente lapso. Por outro lado, tenho que a formação correta do gentílico para quem nasce em São José do Egito deveria ser “egitense”, por vir de “Egito”, ou, se quisesse, “são-joseense”, designativo para habitantes de, pelo menos, 14 municípios no Brasil. Por outro lado, pode-se argumentar que “egípcio” é “relativo ao Egito”; assim, de “egípcio” faz-se “egipciense”, o que se constitui em uma evidente “terceirização” na formação de adjetivo gentílico, já que a palavra “egípcio” não consta do nome. Em favor dos egipcienses, também se pode dizer que as palavras “soteropolitano” e “ludovicense” não derivam de palavras que estejam na composição do nome Salvador (BA) ou de São Luís (MA) – apenas são, “terceirizadamente”, gentílicos provindos da forma grega de “Salvador” (“sotérion”) e da forma latina de “Luís” (“Ludovicus”). Melhor ficar quieto...

Encerrando, transcrevo o que já escrevi sobre assunto idêntico, acerca da naturalidade de Gonçalves Dias, que nasceu em Caxias mas seu chão de nascimento agora está no município de Aldeias Altas, como dito lá pelos começos deste texto:

“[...] O debate é válido. E, claro, tenho minha própria opinião, se é que ela vale algo”.

Minha opinião até agora é a de que não parece ser justo o querer transferir-se uma naturalidade em razão de endodivisões geográficas ou repartições internas de um território. Se isso vingasse, ocorreriam inúmeras situações de sucessivas “atualizações” de certidões de nascimento de uma mesma pessoa.

Será lógico, racional, nascermos em um município e não termos segurança histórica e legal de que não nos mudarão a naturalidade, pelo simples fato de que não podemos antever como as divisões e redivisões de um dado território acontecerão ao longo do tempo?

E como ficaria a situação ou a certidão de nascimento de pessoas que nasceram em terras de diversos Estados que, em séculos passados, pertenceram e, depois, "despertenceram" a outros Estados. São Paulo já pertenceu ao território do Rio de Janeiro, a cujo governo “ficou sujeito, tanto administrativamente como no Judiciário”, como anotou Ildefonso Escobar. Mais: São Paulo já foi também do território da Bahia, de cujo governo “ficou dependente”.

Por sua vez, o Paraná já pertenceu ao Estado de São Paulo.

Partes dos territórios de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso já foram de São Paulo.

A capital paranaense, Curitiba, e o Estado de Santa Catarina já foram paulistas.

São Paulo também já foi e “desfoi” do território do Rio de Janeiro, em um puxa-encolhe que, como sanfona, resfolegou, veio e voltou do século XVI ao século XVIII.

Isto posto – e é só uma amostra... –, dever-se-ia aplicar a lógica das sucessivas mudanças de naturalidade ao sabor e ao longo desses processos de redivisão e endodivisão? Faz sentido isso? Ora!... Uma hora determinado território é de município ou Estado ou país “X”, outra hora passa (ou pode passar) a pertencer a município, Estado ou país “Y”.

Então, ninguém está seguro de sua naturalidade. Haja tempo, esforço e outros recursos para a revisão de certidões de nascimento e atestados de óbito...

É... Pelo visto, corre-se o risco de não sabermos em que terra nascemos.

E, pior, não teremos nem onde cair mortos...”

* EDMILSON SANCHES