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Lembrando papai… O CHÃO ONDE NASCEMOS*

Nossa homenagem a PAULO AUGUSTO NASCIMENTO MORAES... Meu PAI... Meu Espelho...

E fugimos hoje, domingo, da política. Dos políticos e das crises... Estamos olhando a cidade. Olhando-a simplesmente. Olhando-a sem preocupações. Apenas... olhando-a. Olhando-a com a nossa infância dentro dela, nossa infância pobre, desagasalhada de qualquer conforto. Nossa infância jogada nas ruas da cidade, nossa infância desnuda, despovoada de sonhos, nossa infância que viveu todo um tempo prisioneira do lar, do lar construído pelo papai e enriquecido pela mamãe. E a riqueza constava da presença doutros irmãos! E o lar dentro da cidade, da cidade bonita, vestida de tradição, vestida de glórias. Encontramo-la assim na iluminação da NOITE, da NOITE em que nascemos... E ainda hoje a temos na feérica iluminação deste PASSADO. E já na velhice, cabelos brancos, denunciadores das idades, das parcelas dos anos, temo-la ainda com a mesma colonização de luz, enamorada eterna do eterno que existe na fulguração da inteligência! O TALENTO e a CULTURA.

Mas estamos olhando a cidade. A cidade que mal olhávamos com os olhos dos sonhos, com os olhos duma realidade tremenda, angustiante. Quem nos falava dela, sempre, era os nossos pais: ele com as emoções mais fortes da sua vida e ela com as lembranças mais íntimas da sua vida. E dela só sabíamos porque estávamos dentro dela, moleque das ruas, aluno das suas escolas, uma vida vivida da sua pobreza, do lado sacrificado da VIDA. E a cidade continua a nos parecer a mesma. Vestida de glórias e vestida de tradições.

E vamos olhando aos poucos. Olhando sem olhar. Olhando, sentindo-a dentro de nós, bem junto de nós com aquele mesmo cuidado com que abríamos os nossos primeiros livros de leitura. Todas as folhas lidas.

Crescemos na Cidade. Na ilha. E por muito tempo, como ela, fomos prisioneiros do Atlântico. O Atlântico que a escrevia até hoje, posse absoluta dos seus vagalhões, suas ondas em fúria, bramindo lá fora. Mas, um dia, nós saímos, voamos sobre o mar indomável e deixamos a cidade. A cidade berço e que já se enfeita para ser túmulo da criança que tantos anos viveu dentro dela, da criança que envelhece dentro dela... Sim, voltamos um dia... E, hoje, temo-la aí nestas recordações.

E hoje, neste domingo, nós a estamos olhando... E parece-nos ser a mesma. A mesma paisagem geográfica. Um céu que sempre existe. Um sol que sempre nos alumia. E o lar que já é outro. Outro com a nossa MÃE na moldura das lembranças mais vivas. Outro com a saudade do nosso PAI, mas cuja presença está ainda na cidade, na vida da cidade, nas ruas da cidade, no Panteon histórico da cidade, na nossa presença na cidade.

Nós estamos olhando a cidade. Olhando-a simplesmente. Olhando sem tristeza, sem desespero. Olhando-a no registro desta página. Fugindo, tentando fugir desta realidade brutal que está por aí, ameaçadora e terrível.

Isto apenas.

* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 19 de maio de 1963 (domingo)