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Coisas da vida*

Alfredo de Assis Castro, na capa do livro “Coisas da Vida”, de 1916, reeditado, em 2008, pela Academia Maranhense de Letras, para a coleção “Publicações do Centenário”

Melhor título não haveria de dá-se a esta historieta do que “Coisas da vida”, nomeado em um livro de contos do filólogo Alfredo de Assis Castro, onde se ajusta perfeitamente verossímil às palavras do genial Camilo Castelo Branco, o sofrido “bruxo de São Miguel de Seide”, para quem “tudo que é possível tem acontecido, visto que a fantasia não pode ser mais inventiva que a natureza”.

Não existia discagem direta a distância [DDD] e a comunicação era por cartas, onde se exercitava o gênero literário da epístola; e, assim, eu me correspondia com os meus ilustres conterrâneos Josué Montello, Odylo Costa, filho, Manoel Caetano Bandeira de Melo, Astolfo Serra, Franklin de Oliveira, Félix Aires e, sobretudo, com o professor e desembargador Alfredo de Assis Castro, cofundador da Academia Maranhense de Letras e um dos integrantes dos “Novos Atenienses”, depoimento “plutarqueano” onde o senso crítico de Antônio Lôbo analisa o renascimento da cultura e da literatura maranhense, nos albores do século XX. Sobre o que me cabe contar, não poderia, de forma alguma, deixar “passar batido”, porque este fato encerra um acontecimento pitoresco, a desembocar numa confusão de identidade, com surpresas e decepções, quem sabe. Pois bem, um belo dia, bateram palmas no corredor da nossa casa na Rua do Passeio, em São Luís; atendi; à porta, estava um senhor elegantemente vestido que, ao cumprimentar-me, foi logo dizendo: “Gostaria de falar com o Dr. Fernando Braga”; ri, e respondi-lhe que Fernando era eu, e que o doutor ficaria por conta dele, tempo em que o convidava para entrar, o que ele não aceitou, alegando pressa, e, tatibitate nas entrelinhas, insistiu: “Bem sei, bem se vê; estou à procura de seu pai”; retruquei dizendo-lhe que meu pai se chamava Ernani e àquela hora estava em seu trabalho; o homem voltou à carga: “Então, é seu avô!” Tive de explicar-lhe que meu avô se chamava Pedro e já era falecido há anos; o homem mediu-me de cima a baixo, talvez a analisar a minha pouca credibilidade na casa dos vinte anos, e arriscou com ares de pouca-fé e disfarçado desdém: “Então, é você o amigo do desembargador Alfredo de Assis Castro?” Foi aí que me clareou ser aquele senhor um emissário do desembargador, em virtude de este ter-me dito por carta que iria aproveitar um portador para entregar-me em mãos seu último livro. Com este trunfo, de pronto o corrigi, sorrindo: “Amigo não, amicíssimo!”... E continuei: “Temos uma amizade afetiva e literária altamente benfazeja, naturalmente para mim, que absorvo as lições do mestre Assis, um iluminado a serviço das letras e da justiça aqui de nossa terra, além do condão de afinidade que nos une, vez que ele é companheiro de geração de meu avô, e padrinho de um dos meus tios; e mais, conversamos muito sobre amenidades, creio que, talvez por isso, o desembargador me tenha em sua lista de benquerenças, o que, para mim, é uma grande honra”; juro que ouvi o homem, depois de uma pausada respiração, se autoconfessar: “Não, não é possível!” E continuei: “O Senhor é um portador que, por certo, está chegando do Rio de Janeiro, e esse pacote que o Senhor traz consigo é o livro ‘Pó e Sombra’ que o mestre está a enviar-me”. O homem empalideceu; e continuei: “Ele me disse por carta que iria mandar meu exemplar por gentileza de um amigo que viria a São Luís... Pode abrir o pacote, por favor, e confirmar?” O homem trêmulo aquiesceu meu pedido, abriu o pacote e lá estava o livro “Pó e Sombra”, de capa azul, a mim dedicado, com o natural exagero de afetividade do mestre:

“Ao jovem, meu amigo e verdadeiro poeta, Fernando Braga, com a estima e a admiração do seu coestaduano, Alfredo de Assis Castro, Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1970”.

Juro que o homem completamente basbaque com aquela situação, sem mais nada a dizer, desejou suas boas-tardes e saiu a pé, subindo a Rua do Passeio, pela calçada do antigo “Campo do Luso”; eu também, ao pé da porta, acompanhava-o sem perder de vista. O homem dava três passos para frente e olhava para trás; devia ir dizendo com seus botões: “Esse rapaz não pode ser amigo do desembargador, como disse; ou ele é um tremendo “parlapatão, um enganador, sei lá...” “Meu Deus, pode ser também que o mestre Assis já esteja caducando! De qualquer maneira, seja o que Deus quiser!” E sumiu nas sombras das velhas amendoeiras que margeavam o passeio.

Sustenta o escritor português Fialho de Almeida, que, em vez de seguir os seus condiscípulos nos rumos das faculdades, cometeu a grande tolice de se enamorar da literatura. Confesso que também trilhei esse mesmo caminho muito cedo, mas generosamente, amorosamente, como se ela fosse uma cúmplice, u’a amante, sem o amargor com que afirma o autor luso, talvez levado pelas muitas decepções que esse ramo da arte se nos impõe sem piedade. O meio tem a necessária sensibilidade para explicar-se e, às vezes, com razão, onde apenas o tempo, e só ele, se presta para determinar as circunstâncias, que, de algum modo, poderia ter sido e não foi, como naquele verso antológico de Manuel Bandeira...

* Fernando Braga, in “Conversas Vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.