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POEMA SEM POESIA*

“Mes vers ont le sens qu’on leur prête”.
(Meus versos têm o sentido que lhes é atribuído)
Paul Valéry, poeta e filósofo francês (1871-1945)

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Poema é forma, palavras;
poesia, conteúdo, sentido(s)
con/sentido(s)
significado(s)
sentimento(s)
sensibilidade(s)
– do poeta
que re/inventa,
do leitor
que acrescenta.

Todo poeta nasce jovem, velho,
contemporâneo, atemporal.
Sua poesia não tem idade
ou tem todas elas.

Jovem, velho, não são só “fase”, número,
sequer quantidade
de anos;
pode ser estado, condição:
o que é recente – recentidade –,
o que é prévio – antiguidade –,
aquele que chegou, ou se foi,
e a quem não lhe olhamos os algarismos
na certidão de nascimento
ou no atestado de óbito.

Poesia não vai à escola
– e já lhe criamos tantas...
Poesia não se aquieta sob tarjas
fichas catalográficas
código de barras
sumários,
índices
bibliografias
referências.

Poesia, “moderna” (se quiser, “pós-”), não tem gênero
– ou, “bi”, “trans”, “pan”, de A a Z, os tem a todos eles.

Poesia – linear, cartesiana, aragem,
ou “trabalhada”, “renovadora” (de linguagem) –
não precisa razão para ser,
precisa que lhe deixem existir
... senão ela existirá de qualquer forma.

(A pessoa – mais perfeita, sim, das poesias –
para existir, em humildade ou esplendor,
não pediu luxos, não quis manás ou ambrosias...
Inda assim nasceu, interseção desejo e dor.)

O que poesia não depende
é de que lhe definam, lhe encarcerem,
lhe ponham rótulos.
(Claro, tudo isso continuará havendo,
sob o manto de qualquer desculpa ou razão,
“porque somos humanos”,
e “qualquer coisa é criticável”
e “tudo é relativo”

... e tudo e todos – criação, criatura,
o criador e seu criado o crítico, cítrico –,
não tivessem nada mais,
ainda teriam o sagrado direito
de ir pro Inferno em paz...).

Se, verdadeiros ou falsos, admitimos que pessoas diferentes
na beleza, na condição social, na opção sexual, vivam suas vidas,
por que nos incomodamos com o "diferente" modo de escrever poesia,
de fazer poesia, de sentir poesia, de ser poesia, seja ela o que ela seja?

Quem,
serpente ou Adão,
Eva ou maçã,
habita esse jardim
e se acha a gênese
pio/gênese
parênese
da Criação?

Quem tu és,
novo Moisés?
Acaso portas as pedras
– regras –,
novo portal
de onde (merda!)
medra
esperança
criadora,
logo, poética?

(Enquanto o “Lógos”,
também universal,
também Poesia,
se une em verso
com Heráclito em Éfeso,
João no Evangelho,
Fílon em Alexandria).

Há poesia “simples” / “simplória”, “malfeita”?
Há poesia “feia”, “noviça”, “de iniciante”?
Há poesia que, de tão “assim”, sequer lhe sabemos o adjetivo?
E daí, Champollions (com suas líticas Rosettas)?
Alevantem, mosaístas, as “suas” poesias
como novas tábuas
de cláusulas
e clausuras
pétreas
mandamentais
mandatárias
mandatórias.
Aguentem seu peso antes que caiam
e, pedras que são,
se quebrem
e se tornem úteis cascalhos
calhaus
seixos
britas
na pavimentação de caminhos,
no erguimento de muros.

Ó, semideuses!,
embriagados com seu próprio vinho poético,
não têm como perceber que o vinho
é fluido demais para nele sustentar-se a verdade,
qualquer verdade
– pois verdade líquida é incerta
e assume a forma do vaso
ou dos intestinos
que a contêm.

No vinho não está a “veritas”, “vérité”, verdade:
está, só, a embriaguez, embriaguez e bobagens.
Ninguém chega ao balcão e pede vinho à procura de certezas,
em busca de verdades em doses, taças, copos:
quando muito pede acompanhamento, quer acompanhante.
Ninguém pega a garrafa e nela busca ou dela despeja
o Real, o Pleno, o Absoluto...
senão, em novo e não divinal “fiat!”, mijaríamos convicções
e concretudes
e continuaríamos bêbados no sétimo dia.
Não se fazem universos em penicos, urinóis
– que é onde fazemos
quando tudo em nós já foi feito.

Na poesia e na pessoa, esqueçam-se os adjetivos
e deixe-se o que há de substantivo ser.
Ruim não é a poesia “diferente”
– é ser intolerante com a existência do diferente...

O diferente é o outro, e o outro é meu referente,
minha medida, “alter ego” do “self”:
afinal, o bom, o bem, o belo, o elevado, o mágico
existem porque o outro, que não é, existe
– só há o belo, o bom, o divino se houver
o seu contrário: o feio, o ruim, o humano.

Deixem os rústicos rirem
os incultos cultivarem
os tolos versejarem
o tosco capengar
o torto coxear
o diferente claudicar.
Pois, mais feios que eles,
a intolerância, a arrogância
andam, caminham, voam...
e até no nada
cada uma delas nada
de braçada...

Hospedeiros da presunção,
não queiram o sumiço do diferente
só porque o diferente os atrai,
não lhes convém,
não lhes é... igual (ora bolas...).

Que triste uma sociedade de poetas vivos...
e prepotentes.
Poetas que tanto fazem poesia
quanto “desfazem”, fazem pouco,
de poemas alheios.

E são esses que recitam “Viva e deixe viver”,
pregam o direito de nascer,
e, bocudos, mandam um e outro se foder?

“Doutores” em poesia,
despóticos em caráter.
Escrevedores de an/versos em espelho.

Mirem-se, inversores:
Há quem
– também –
lhes ache feios, horríveis,
por fora ou por dentro, ou os dois.
Mas, por serem feios, vocês não precisam
de autorização dos outros para existir.
(Lembrança de poesia
memorizada na infância [O autor, quem é o autor?]:

“Que sapo medonho
com cara de mau,
no lombo levando
pancadas de pau.

Que bicho mais feio?
Será mau assim?
Por que é que vocês
o julgam tão ruim?

Se é feio, decerto,
ninguém vai desdizer,
mas só por ser feio
ele deve morrer?”

Ah essas poesias simples!...)

A poesia “diferente” precisa
– formal –
de autorização? Não;
ou, prisional,
de alvará de soltura? Frescura;
ou, escravocrata,
de carta de alforria? (Quem diria!...);
ou, clerical,
de “nihil obstat”,
“imprimatur”? “Deleatur”!

Por que a intolerância contra o que não é seu?

“Porque não é poesia”, dirão, bocejando,
os donos do DNPI
– departamento nazista da poesia imaculada:
eugenia... eupoesia...

Estão enganados os que se acham
criadores da poesia imaculada
ou de um jeito especial (o jeito “deles”)
de fazê-la.

“Não é poesia!!!”, insistem – louca/mente – os “inventores”,
os “pais” da poesia – na verdade todos eles filhos,
filhos da luta
– da igual luta pela vida
que teimamos existir.

“No meio do caminho tem uma pedra”.
Mas, antes dela, antes do verso, tem Drummond...

“azul / teu cu”
– sujidade não há
se o verso ou o poema
é de Gullar.

(Poetas federais
retiram ouro
das fossas nasais.

... Enquanto os municipais
e estaduais – eca! –
do nariz mesmo só tiram
humana meleca...).

Poesia é libertação,
corrente sem elos
– e toda ela ligação.

Desde a origem, poesia, “poiésis”, é criação.
Poetas, hum!, tão somente criaturas são...
So/mente.

Poetas acham que escrevem poesia.
Entanto, é a Poesia que se inscreve neles
e usa cada um – “medium” – como papel de rascunho e sangue.

Coitadinhos de nós...
Acreditamos que sabemos
acreditamos que somos
acreditamos que escrevemos...

Enquanto isso, em amor atemporal,
eterno
imortal
Cronos e Criação, paternais,
riem-se de nós...

* EDMILSON SANCHES

Ilustrações:
“A Criação de Adão” (detalhes), pintura de Michelangelo (1475-1564), no teto da Capela Sisitina, no Vaticano.