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Soneto do estar-me somente*

Um grito em lá como num canto místico,
um gozo em ré como numa noite longa,
um dó de resto como no bater da porta,
um sapateiro bêbedo a martelar a sola.

Um padeiro caolho a fermentar o trigo,
um poema, um terço, um cão e um galo,
a assistirem um doido a chupar sorvete
e acertar um velho relógio sem ponteiros.

Um pôster de Che Guevara na parede,
Um retrato do artista quando jovem
e restos de vinho, cigarros e pão dormido.

Eram os bens que tinha, era tudo de meu,
e mais as memórias de Dom Pablo Neruda,
a confessar que amou e que também viveu!

* Fernando Braga, in “Poemas do tempo comum”, São Luís, 2009.