Paulo Augusto Nascimento Moraes partiu um dia para a iluminação dos astros que devem tê-lo recebido com aquela mesma oração a Cassiano Morto, rezada pelo mestre Austregésilo de Ataíde: “assim, vendo-te inerte, não nos espanta nem aflige essa imobilidade natural, pois diante dos nossos olhos está o momento erguido...”.
Paulo foi uma alma emotiva, liberta, um poeta lúcido, cheio de sentimentos puros, um jornalista de estilo claro e elegante, um intérprete da noite, da noite que o fez e para sempre, bruxo e cancioneiro, um homem desprovido daqueles maldizeres e malsinares que sempre conviveram mesquinhamente em nossa província, anunciados pela prédica do Padre Vieira no seu “Sermão da Sexagésima”.
Ficaram-me, na lembrança, muitas imagens do poeta, dentre elas, junto à sua irmã querida Nadir Adelaide Nascimento Moraes, todas as manhãs no sobradinho da família na Rua dos Afogados, onde ia tomar o café e ler os jornais. Ali, as conversas aconteciam envoltas em saudosismos e gostosas gargalhadas, onde sempre a figura central era o pai, o velho Nascimento Moraes, jornalista, escritor e professor catedrático do Liceu Maranhense, autor de vários livros, e figura exponencial da história intelectual do Maranhão; e da mãe, Ana Augusta com quem Paulo não aprendeu a tocar piano, por mais que ela quisesse, porque o velho Nascimento, deitado numa rede preferia que seu filho querido ficasse detrás de uma porta a recitar “Os Lusíadas” em voz alta, para amenizar, pelo menos, aquela sua gagueira familiar, marca registrada de todos os filhos de Nascimento, o que nele, Paulo, não ficaria bem, principalmente para tornar convincente a assertiva do velho: “Era melhor ser orador que pianista, porque a mágica da palavra é o veículo do pensamento, parafraseando Teilhard de Chardin, dizia Nascimento à Dona Sinhá, como era chamada pelos íntimos, a mãe de Paulo Moraes, também educadora e Senhora das mais distintas e elegantes que conheci.
Ficou-me do poeta, aquele Paulo a escrever sua crônica diária em casa de Nadir, sua irmã do peito, na varanda, no corpo da casa, onde funcionava o Instituto Raimundo Cerveira, um sobradinho de azulejos na Rua dos Afogados esquina com Rua de Santaninha; aquele Paulo em casa de Emília, sua companheira querida, e mãe extremada e carinhosa de Paulo de Tarso, na época o pequeno Paulinho, hoje, como não poderia ser diferente, também professor e, mais, consultor de língua portuguesa; lembranças de Paulo a cruzar a Praça João Lisboa, a Benedito Leite, e em outras e tantas paisagens, principalmente nos arrabaldes da cidade; lembranças de Paulo a sair fantasiado de fofão em dias de Carnaval, a se fazer logo conhecido porque o anonimato não convivia consigo, nem por brincadeira. Ficou-me para todo sempre do poeta, aquele Paulo a declamar e a fazer gestos largos e envolventes com as mãos, dizendo pausadamente aos ventos das praças e às algaravias dos botecos:
“Aquarelas de luz numa tarde de agosto...! / e bem junto de nós a canção das cigarras... / e, no azul deste céu, o agitar das fanfarras / destes ventos do sul a beijar o Sol-Posto! / Fim de tarde a cair sem o mal de um desgosto!... / e este mar a gemer como sons de guitarras... / e este amor a morrer, a quebrar as amarras / dessa grande aflição que ilumina o teu rosto!... / Caminhemos então!... Tudo é sombra, querida!... / As cigarras cantando!... as cigarras cantando / afugentam de nós as tristezas da vida! /esta tarde morreu!... tu mo afirmas, num beijo! / eu te digo que não, entre prantos, chorando, / tu me dizes que sim, sepultando um desejo”.
Lembranças de Paulo com as pernas cruzadas, a falar e a rir como se a vida nunca lhe tivesse dado porradas, gargalhando na amplidão das noites que lho assistiam ao talento, à criação e a contemplação das estrelas que respingavam luz nas madrugadas da velha Ilha, que o ouvia melancólica e ao mesmo tempo alegre, porque dela ele era seu cronista maior.
Ficaram-me de Paulo seus olhos ao longe, parados como “poemas de amor que morrem sem rima”, a tagarelar mentalmente lembranças do passado, entre saudades e vivências, envoltas em boêmias dispersas na noite, espalhadas com ternura pelo silêncio da cidade.
Ah, quantos auroras raiamos juntos, quantos poemas juntos declamamos, quantas amenidades apostilamos no Largo do Carmo, no Bar do Castro, no Narciso, no Pataquinha ou na “Base do Cabral”, na Vila Passos, seu compadre e seu amigo, que no sepultamento de Paulo abriu duas garrafas de cerveja; uma ele bebeu ali, e a outra ele derramou no esquive do ilustre morto, a cumprir, assim, um acordo que ambos fizeram; quantas lembranças!... e ela, a poesia, com música, e mulheres... e Paulo Moraes a cantar acompanhado pelo saxofone do Zé Chagas, que o enxaguava com cerveja para limpar-lhe o azinhavre, e pelo assobio do meu pai, um português que eu, seu filho, o tinha como um irmão mais velho, porque ele, além de meu companheiro, era meu herói; loas dedico-lhe também neste dedo de prosa, a ele, meu pai velho-de-guerra, da família dos “boa gentes”, dos mais finos que conheci, o qual, se não fosse meu pai, tê-lo-ia implorado a Deus que o fosse.
Pois bem, voltando ao pé da conversa, ficou-me de Paulo sua lembrança aos sábados pela manhã, na redação do “Jornal do Dia”, naquele tempo, Paulo escrevia crônicas sobre os conflitos entre Egito e Israel, sem nunca ter cumprido a promessa de ir a Jerusalém receber a comenda que lhe outorgara o Estado Judeu, por meio do seu embaixador no Brasil, leitor de seus apontamentos. Paulo tinha medo de viajar de avião e não pretendia morrer, tampouco, nas Colinas de Golã, na Faixa de Gaza. Era preferível ficar por aqui mesmo curtindo uma cervejinha gelada, sob a lua de São Luís que já lhe derramara prata suficiente nos cabelos.
Ficaram-me de Paulo, suas histórias na Galeria Cruzeiro, no Rio de Janeiro, a declamar seus versos e dos outros, ante as atenções retidas de outros boêmios e artistas; de Paulo repórter a riscar com batom corpos de mulheres na Lapa, para denunciar, nas páginas de “O Jornal”, onde trabalhava, órgão dos Diários Associados, o famigerado Padilha, delegado de polícia, que à época ficou conhecido por chicotear moças da vida airada em Copacabana, conseguindo, assim, Paulo, envolvê-lo num processo jornalístico-criminal e dar um basta naquele exercício de tirania; lembranças de Paulo a discursar no Cemitério do Caju, no enterro do nosso conterrâneo e genial poeta Catulo da Paixão Cearense, a arrancar lágrimas de muita gente, inclusive do nosso querido e já falecido amigo, William Soares de Brito, o saudoso “Lilico”, companheiro de boêmia de Paulo e médico radicado ao tempo no Rio de Janeiro, onde detinha grande clientela, pela sua abnegação e competência à Ciência de Hipócrates.
Este é Paulo Augusto Nascimento Moraes que me legou um dia o luar dos seus cabelos, envolto em saudades e em noites de abusão por esta São Luís que, aos poucos, se desmancha em sal sob a mortalha de um doloroso e cruel esquecimento, e já quase sem memória sob o Sol.
* Fernando Braga, advogado, poeta e ensaísta.