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A Academia Caxiense de Letras (ACL), a instituição-máter e/ou referência na área cultural do município de Caxias, completou 27 anos exatamente na última quinta-feira, 15 de agosto.
A solenidade de posse dos membros da ACL foi realizada no ano seguinte ao da fundação, 1998, dia 1º de agosto, a maior data comemorativa do município, o penúltimo a aderir à Independência do Brasil, proclamada quase um ano antes, em 7 de setembro de 1822.
Fui convidado pelos meus Pares Acadêmicos para fazer o discurso de posse em nome de todos, naquele 1º de agosto de 1998, no auditório da Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Caxias. Este discurso:
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"O PASSADO DE CAXIAS É UM PRESENTE DE FUTURO"
(Discurso de Edmilson Sanches na solenidade de posse dos membros-fundadores da Academia Caxiense de Letras, no auditório da Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Caxias, em 1º de agosto de 1998).
Senhoras e Senhores:
O local mais seguro para um navio é o porto onde ele está fundeado. Mas não é para portos que se constroem navios.
O lugar mais seguro para um automóvel é a garagem, onde ele fica guardado. Porém, não é para as garagens que se fabricam carros.
O melhor lugar para uma criança é o colo da mãe ou os braços do pai. Entretanto, não é para ficar vitaliciamente debaixo das vistas do pai ou sob as saias da mãe que se geram filhos.
Uma Academia igualmente é um local razoável para um intelectual, para um humanista. Mas, ouso dizer, não é somente para reunir gentes sábias que se formam academias.
Não, Senhores. Apesar de ali estarem seguros, não é para portos, mas sim para os mares, que navios são construídos. É para a probabilidade da tempestade, é para a possibilidade da bonança, é para a certeza da viagem que navios são feitos e são lançados à água e singram mares já ou nunca dantes navegados. Navios são feitos porque os mares, e não os portos, existem.
Também é para roer distâncias, encurtar tempos, transportar pessoas e coisas, que se fazem carros. Eles são para as ruas e estradas, pois das vielas e becos cuidam nossos pés. É porque existem espaços para transitar, e não garagens para estacionar, que se industrializam carros.
É para a vida, para o mundo, para a certeza das buscas e incerteza do encontro, que se geram filhos. Sobre eles, pais, no máximo, têm autoridade, não propriedade.
É principalmente para unirem-se em torno de um ideal, e não em frente uns dos outros, que pessoas se juntam em clubes de serviço. E uma Academia de Letras também é, ou deve urgentemente ser, um clube de serviços, ou, melhor, menos clube, e mais serviço. Prestar serviços que prestam.
Porque é urgente e preciso organizar as pessoas para que elas organizem, para melhor, o mundo. Abrir não o leque que espalhe um arzinho de conforto, mas um fole, que resfolegue, que crie, espalhe e trabalhe também o desconforto, donde poderão sobrevir respostas e realidades – assim como do desconforto, da irritação da ostra nasce a preciosidade da pérola. As Letras não são somente canto de acalanto, mas toque de despertar, sinal de alerta, sirene de alarme, aviso de marcha, hino de guerra, canção de vitória.
Senhores:
O que legaliza uma Instituição é seu registro, mas o que a legitima é a qualidade de sua ação. Os Cartórios e as Juntas Comerciais estão cheios de certidões de fantasmas, de escrituras de vivos-mortos. Nesse caso, não há muita diferença entre uma certidão de nascimento e um atestado de óbito.
Não tem jeito. O mundo exige, as cidades precisam, o ser reclama: pessoas e instituições têm de fazer diferença. Há muita inércia no mundo, muita energia estática.
Em uma Academia, não basta assinar o ato de posse – temos de tomar posse dos nossos atos. Pelo menos nós aqui, gente escolada na vida e no ofício, sabemos que o ato de posse não se exaure, ou não se deve exaurir, nesta noite de destaques e de discursos. Não basta tomar posse NA Academia; e indispensável tomar posse DA Academia... Que ninguém se sinta pleno aqui e agora. Academia não mais é reverência; quando muito, é referência. É, em igual tempo, museu e laboratório, conservação e criação, pensamento e ação.
Por mais inusual, pouco comum, que pareça, também cabe a uma Academia – como caberia a qualquer Instituição – auxiliar na desinstalação das pedagogias criminosas. Da pedagogia que não adiciona valor, embora subtraia rendas. Da pedagogia prendedora, e não empreendedora: a educação para a passividade, que disciplina para a dependência, não para a competência.
A dependência cria, no máximo, a revolta; a competência faz a revolução. A revolta muda as pessoas do poder. A revolução muda o poder das pessoas, mostra às pessoas que elas são ou têm o poder.
O revolucionário preexiste à revolução. Uma revolução inicia-se pelo nível da consciência. Uma revolta, pelo nível da emoção. O que se inicia pela consciência fortalece a emoção; o que começa pela emoção, fragiliza a consciência. O revolucionário tem consciência da necessidade. O revoltado tem necessidade da consciência.
Uma Academia é um laboratório – e não um repositório – de consciências.
Senhoras e Senhores, meus Confrades da Academia Caxiense de Letras:
Muito do que aqui estou dizendo é repetição, senão pregação, do que venho falando ou escrevendo já há algumas décadas, a partir, mesmo, desta minha Caxias, ela que é muito mais de mim que eu dela, pelas necessidades e oportunidades que me tornaram saudável vagamundo cidade afora.
Caxias merece sua – esta – Academia. Estranha-se, até, o não ter havido há mais tempo, há décadas, mesmo há séculos, a ocorrência da salutar tradição que somente hoje, agora, aqui se repete, excetuadas as outras formas de ajuntamento de pessoas e nominação de entidades similares que existiram no município.
Caxias, a do Maranhão, pode-se dizer, é uma das raras cidades das mais de 5 mil que existem no país que não se diz apenas berço de homens de letras: mais que escrever livros, seus filhos construíram Literatura, deram início a escolas, gêneros, modos de fazer, que influenciaram e influenciam. Porque foram seres que não só usaram as Letras; eles ousaram nelas.
Caxias, portanto, sem passadismo, tem, de ser mais ousada e menos usada. Menos reverência à História (cujo mérito ninguém nos tira) e mais referência de Futuro, cuja construção se inicia todo dia e pode ser negada.
Não basta a Caxias ser um museu a céu aberto se livros e mentes permanecerem fechados. O passado desta cidade, como bem poucas cidades podem dispor, é o baldrame, pode ser as fundações sobre as quais se podem alevantar edifícios inteiros na área econômica, como o turismo de eventos, o turismo cultural e o ecoturismo. O passado está – e é um – presente... de futuro.
Talvez isso, quem sabe, seja a grande fórmula do desenvolvimento, um desenvolvimento onde aos haveres econômicos se aliem os valores culturais. Tudo tem de estar integrado. Onde a Engenharia erga prédios, a Estética espalhe sensibilidade. Onde a Geografia imponha limites, a Cultura interponha pontes. Onde a Economia fixe preços, a Arte destaque valores. Enfim, onde o Homem faz corpo, Deus sopre alma. Porque, à maneira de Vieira, prédios sem pessoas viram ruínas senão escombros. Países sem pontes viram isolamentos senão ditaduras. Economia sem cidadania vira exploração senão barbárie. Política sem Humanismo vira escravidão senão tirania. E pessoas sem cultura nem alma viram máquinas senão monstros.
E por que assuntos como este, de Arte e Cultura, parece ser tão incompreensível, inadmissível, tão “démodé”, às vezes tão estranho, hoje?
O que foi que aconteceu? Houve a banalização da fala? A vulgarização da palavra? A dessensibilização dos sentidos? A dessacralização dos sentimentos?
É o mau uso da Língua, a incorreção da linguagem, a palavra de duplo sentido ou a vida sem nem um significado?
É a precariedade ética, a prevenção cética, o primarismo estético, o pragmatismo técnico?
É a miopia política, a ausência de crítica, a repetição cíclica, a deseducação típica?
É a inafeição cultural, a inaptidão intelectual, a indisposição literal, a desinformação atual, a decomposição moral e coisa e tal, o que é, Senhoras e Senhores? É a falta da virtude rara, da vergonha na cara?
Desculpem-me – peço-lhes – se, em vez de um fraseado bonito e soluções confortantes, trago-lhes eu aqui um leriado, um palavreado feio e dúvidas cortantes, constantes. Mas até nisto há de se entrever algum mérito, porque o homem também cresce quando duvida.
É preciso mais. É urgente dar mais vida à vida.
Nós, os acadêmicos “de fora”, claro, não estamos EM Caxias, mas sempre estaremos COM Caxias. Ser caxiense não é construir residência em Caxias – é construir Caxias dentro de si. Não é ter emprego na cidade – é trabalhar por ela. Não basta apenas ser filho da cidade – é preciso criar e crescer a cidade dentro de si.
Uma cidade e uma academia têm esse ponto em comum. Caxias – e sua Academia – não são somente referência, reverência, abstração, memória, história, inspiração. Caxias – e sua Academia – não são só um sentido, um sentimento. A cidade – e sua academia – também são matéria, chão, paredes, mobília, necessidades a serem supridas, reclamos a serem atendidos, participação a ser cobrada, direitos a serem exigidos, deveres a serem cumpridos, contas a serem pagas. Nesse ponto, estou certo, pela cidade e pela Academia, nós, os acadêmicos “de fora”, faremos o possível – embora, reconheçamos, o possível nem sempre é bastante.
Senhores Acadêmicos, Senhoras e Senhores:
Em Caxias, sua Academia de Letras não é um contraste – é do contexto. Não é um confronto – é um encontro. Nasce de espíritos interessados, não de mentes interesseiras. A lógica de sua criação baseia-se em argumentos, não em argúcias.
É demagógico o discurso de que uma academia não é necessária a uma cidade, de que a região tem outras prioridades. Claro, ninguém vai à “vernissage” nem à “avant-première”, ninguém vem a uma solenidade como esta com olhos e bucho de fome. Mas Terra e homem foram dotados de recursos suficientes para que, explorados de forma inteligente e íntegra, integral e integrada, a vida se faça plena, dispensando, pois, prioridades isolacionistas, hierarquias mecanicistas, vícios segregacionistas, demagogias separatistas. Visão de conjunto, percepção do todo: É perfeitamente possível transformar em complementar o que se diz concorrente. Tornar compatível o que se julga contraditório. Fazer amigo no que é adversário.
Senhoras e Senhores:
Como disse no dia 1º de maio deste ano, nas solenidades da Semana de Gonçalves Dias, o orgulho de ser caxiense se amplia saudavelmente todas as vezes que aqui me encontro – “me encontro”, aqui, no sentido de que aqui chego e aqui me redescubro mais filho desta terra, mistura deste pó, amálgama deste barro.
Descontados os intelectuais caxienses que aqui continuam a residir, a cidade por estes dias ficou um pouco maior, populacional e, ouso dizer, culturalmente.
Neste 1º de agosto, Caxias tem duplo motivo para comemorar: a História que se repete há 175 anos, pela adesão à Independência; e a História que se inicia, pela posse formal dos membros desta Academia. No mínimo, deve estar contente o cantor dos Timbiras, e se água do oceano neste instante se encrespar mais é porque o Poeta se regozija sob o manto marinho que lhe serve de coberta há 133 anos.
Como se vê, Caxias, assim como Paris, é uma festa. Festa literária. Festa de reencontros. Festa de relembranças. Festas de História.
Colegas Acadêmicos:
Como veem, por tudo o que disse aqui, Academia não é só um fardão: ela é também um fardo.
O qual, pessoalmente, ajudo a carregar.
Senhoras e Senhores, colegas de Academia:
Sejamos cada vez mais caxienses.
Sejamos cada vez mais cidadãos.
Sejamos cada vez mais solidários.
Sobretudo, sejamos cada vez mais felizes.
Pela paciência e atenção, aceitem minha gratidão; e, com afeto, aceitem o afeto que se encerra neste peito juvenil.
Muito obrigado.
* EDMILSON SANCHES