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1º/7/2024: 104 anos… Rogaciano Leite*

– No Maranhão, apresentou-se em São Luís e Caxias.

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Uma vida curta não é, necessariamente, uma vida pequena. A grandeza de uma existência não é expressa pela quantidade de dias decorridos entre a certidão de nascimento e o atestado de óbito.

Grandeza tem a ver com qualidade, intensidade. Dedicação. Grandiosidade.

Hoje, 1º de julho de 2020, completam-se 100 anos de nascimento do poeta, declamador, jornalista e radialista Rogaciano Bezerra Leite.

Do município de São José do Egito, mais exatamente no Sitio Cacimba Nova, Povoado Umburanas, hoje território de Itapetim, em Pernambuco, onde nasceu em um dia hoje, em 1920, numa quinta-feira, até o Rio de Janeiro (RJ), em uma terça-feira, 7 de outubro de 1969, quando o coração do homem não aguentou a intensidade do artista, Rogaciano Leite caminhou caminhos nunca dantes caminhados pela maioria de seus conterrâneos nordestinos. Nesse itinerário de vida e ofício, Rogaciano, jornalista, escreveu reportagens premiadas; poeta, escreveu versos declamados; compositor, escreveu canções gravadas; declamador, recitou e interpretou poemas aplaudidos.

Os caminhos que Rogaciano caminhou levaram-no, no Brasil, de Norte a Sul do País, sendo destacado e distinguido tanto em Manaus, capital do Amazonas, referência da maior floresta tropical do mundo, quanto em Santos, em São Paulo, referência do maior porto da América Latina.

Os caminhos que Rogaciano caminhou, os ares por onde voou e os mares que atravessou levaram-no a países da Europa (Portugal, França e Espanha), de onde tirou fotos, informações e inspiração para escrever reportagens e outros textos.

O filho dos agricultores Manoel Francisco Bezerra e Dª Maria Rita Serqueira Leite, o marido da aracatiense Maria José Ramos Cavalcante, o pai de Rogaciano Leite Filho, Anita Garibaldi, Roberto Lincoln, Helena Roraima, Rosana Cristina e Ricardo Wagner, era um peripatético, andarilho, “globe-trotter”, em igual tempo sertanejo e cosmopolita, andando e ensinando, escrevendo e emocionando. Um homem homenageado. Conhecido e reconhecido.

Talento tão singular quanto plural – a ponto de ser Rogaciano um incomum caso de estudante a ingressar em uma Faculdade (de Filosofia do Ceará, em Fortaleza) para um curso superior (Letras Clássicas) apresentando uma obra sua (“Acorda, Castro Alves!”) e fazendo a prova vestibular de Latim em versos... mas versos alexandrinos, de 12 sílabas e outros que tais, e ainda evocando Cícero e Ovídio, consagrados escritores e poetas clássicos romanos dos séculos I e II antes de Cristo. Mereceu nota dez. Além disso, com sua atividade de jornalista e poeta o levando para muito além da capital cearense, onde estava a Faculdade, Rogaciano foi liberado da presença nas aulas e só comparecia nos dias de prova. Formou-se – tendo sido “o primeiro Cantador a alcançar um grau tão elevado”, como atestam os igualmente cantadores Francisco Linhares e Otacílio Batista, em sua “Antologia Ilustrada dos Cantadores”, obra publicada em 1976, com segunda edição em 1982.

Talento destacado também por seus pares. Foi amigo do poeta Manuel Bandeira, pernambucano que nem ele. O romancista baiano Jorge Amado que escreveu e o elogiou pelo poema a Castro Alves. Câmara Cascudo, o notável antropólogo, advogado, historiador e jornalista potiguar, fez a apresentação da principal obra rogacianiana, “Carne e Alma”, publicada por Irmãos Pongetti Editores, do Rio de Janeiro, em 1950. Na música, “monstros sagrados” da MPB clássica como Francisco Petrônio, Nélson Gonçalves e Sílvio Caldas, entre outros, gravaram composições de Rogaciano. Foi ele quem destravou as portas do tradicional e à época elitizado Theatro José de Alencar, na capital cearense, para os cantadores, os repentistas, os cordelistas, os agentes, fazedores e admiradores da rica cultura popular nordestina. Como jornalista, Rogaciano ganhou, em diversas categorias, nada menos que dois prêmios Esso de Jornalismo, além de uma menção honrosa. Não é pouco...

Em 1947, Rogaciano Leite veio ao Maranhão – esteve em São Luís e em Caxias. Intelectual, poeta e declamador, apresentou-se, por obra e graça dos amigos ludovicenses, no Teatro Artur Azevedo. Desse tempo, sobrevivem memórias em seus colegas escritores que o conheceram naqueles idos, entre os quais o advogado, ex-deputado e acadêmico Sálvio Dino e o advogado, poeta e crítico literário Fernando Braga.

Em Caxias, Rogaciano apresentou-se em noite concorrida no Cine Rex. Lembranças dessa apresentação ainda mantêm-se presentes, por exemplo, em Arthur Almada Lima Filho, desembargador, escritor, acadêmico, e Frederico José Ribeiro Brandão, advogado, escritor, ex-deputado federal por São Paulo, que participaram do evento – ambos caxienses e meus confrades no Instituto Histórico e Geográfico de Caxias e na Academia Caxiense de Letras.

Conheci dois dos filhos de Rogaciano Leite: o Roga Filho, como alguns o chamavam, também jornalista e escritor, conheci-o em Fortaleza e até o homenageei em um poema, "Estoril", sobre um bar e restaurante dos intelectuais e boêmios da noite fortalezense; e Helena Roraima Iracema Cavalcante Leite, engenheira civil e doutora em Economia Política e Social pela Universidade Complutense de Madrid, conheci-a em Brasília (DF). Rogaciano Filho faleceu em 05 de março de 1992, em São Paulo (SP). Helena Roraima, que mora há anos na capital da Espanha, conheci-a na Capital Federal, onde por anos foi minha colega, na assessoria da presidência da maior instituição financeira federal de desenvolvimento regional da América Latina.

É Helena Roraima que, com as limitações ditadas pela atual pandemia mundial, desenvolve, com competência e carinho, um esforço enorme para juntar os ecos, repercussões e ressonâncias de e sobre seu pai, documentados em matérias de jornais, fotografias de amigos, depoimentos de admiradores, enfim, tudo o que, espalhado na materialidade dos documentos físicos ou na digitalidade do universo virtual, possa (re)constituir um pouco dos muitos passos dados por Rogaciano Leite Brasil adentro e mundo afora.

Procurado por Helena Roraima décadas depois de nossas atividades em Brasília, juntei-me aos esforços da filha e também saí em busca de informações e pessoas que pudessem enriquecer e ampliar ainda mais o acervo que está sendo montado, para exposição em futuro evento pós-pandemia  --  o que também o farão as prefeituras dos municípios de São José do Egito e Itapetim, que já haviam elaborado grande – e adiada "sine die" – programação em homenagem ao ilustre filho pernambucano.

Por enquanto, um dos principais suportes de documentação e divulgação do acervo rogacianiano está no endereço eletrônico https://www.facebook.com/centenariorogaciano.leite.1  . Este “link” leva a uma página da rede social Facebook, criada e administrada por Helena Roraima. Nesse espaço, estão desde versos escritos até áudios, imagens, depoimentos etc. da breve vida e vasto mundo do poeta Rogaciano Leite.

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Não seria pedir muito que o centenário de Rogaciano Leite fosse comemorado com ele aqui presente, em carne, osso, alma e talento. Já não se estranha o completar-se um século de vida – até porque a Ciência anda aí anunciando que o homem bicentenário já está entre nós, ou seja, corre-se o saudável risco de um bebê que nasceu por estes dias ter festa de aniversário vivinho da silva em 2020.

Assim, especialmente hoje, morrer aos 49 anos parece uma afronta, uma indignidade ao ser humano, única criatura feita à imagem e semelhança do Criador... Dá para imaginar o quanto de potencialidades ainda flamejavam no íntimo mental de Rogaciano Leite. Mas, segundo os velhos latinos, “aquele a quem os deuses estimam, morre jovem” – ou, no idioma do antigo Lácio, que tão bem Rogaciano dominava: “Quem dil diligunt, adolescens moritur”. É frase de Titus Maccius Plautus, o dramaturgo romano Plauto, que viveu ali entre o segundo e o terceiro séculos antes de Cristo e que teria se abeberado em obra do grego Ménandros, o autor original da oração.

A valer essa máxima greco-latina, pode-se dizer que os deuses têm lá seus momentos de bom gosto: já cansados de bobos, truões e bufões em sua corte divina, nada como os deuses “pescarem”, no grande oceano da vida humana, alguém muito bom, que os pudesse deleitar com récitas ou recitais, canções e composições e, ainda, de quebra, pudesse escrever-lhes os perfis e seu cotidiano eterno.

Talvez Rogaciano Leite, sabendo dessa sentença, tenho imprimido um ritmo tão intenso na arte de escrever, fazer e viver em sua vida de 49 anos, 3 meses e 1 semana. Foram pouco mais de 49 anos que bem parecem cem.

Pois ele sabia: os bons, quando os deuses querem, correm o risco de partirem mais cedo...

Viva Rogaciano.

EDMILSON SANCHES

AFINAL, ROGACIANO LEITE É EGIPCIENSE OU ITAPETINENSE?

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O Rio Pajeú passa por diversos municípios no Estado de Pernambuco. Só na microrregião do Pajeú são uns 17. Mal comparando, o rio parece um espesso fio líquido (e incerto, já que sazonal) unindo cidades como se fossem contas ou camândulas em um imenso terço ou rosário.

Praticamente bem no centro do Estado, na parte norte, na divisa com a Paraíba, está o município de Flores, por onde, neste leriado, começamos a construir a resposta para a pergunta-título deste texto.

Flores é velha que nem pé de serra. O início de sua história remonta ao século XVI, lá pelas metades do ano de 1589. Neste ano, chegou a uma aldeia, nas terras da hoje Flores, pelo Rio Pajeú, uma expedição de portugueses e índios escravizados, uma das muitas expedições que o administrador colonial lusitano Garcia d’Ávila enviava para colonizar regiões e ampliar seu latifúndio, que chegou a 800.000 quilômetros quadrados de área, 40 vezes o tamanho de um país como Israel.

O que a expedição luso-indígena não contava é que, quando ela aportou no hoje Alto das Flores, tiveram todos os expedicionários aprisionados pelos índios tapuias, que exatamente naquele dia estavam em festas, homenageando um chefe índio da aldeia da Baixa Verde, nas terras do hoje município de Triunfo, dali das vizinhanças, digamos assim.

Os expedicionários foram mortos, exceto duas meninas, cuidadas pelos tapuias como pequenas deusas. Aracê e Moema, foram os nomes indígenas que as meninas receberam. As meninas ensinaram a língua portuguesa para índios e os ajudaram a ser mais tolerantes com os ditos brancos. Cerca de 15 anos depois, em 1603, apareceu nova expedição, mas aí o tratamento foi outro. Novas e melhores habitações foram construídas – transferência de tecnologia...

E a história de Flores se foi fazendo... Em 1783 era oficialmente distrito. Em 1810, vila – extinta em 1851 e recriada em 1858. E, finalmente, em 1º de julho (dia e mês em que o poeta e jornalista Rogaciano Leite nasceu...) de 1909, Flores ganha sua autonomia, transformando-se em município e cidade-sede.

Como diz o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, órgão do Governo Federal), “o município de Flores, outrora, compreendia uma vasta região que iniciava onde hoje se situa o município de São José do Egito, indo até o atual município de Tacaratu”.

Pois bem. Todos que tentam puxar a naturalidade de Rogaciano Leite para São José do Egito ou para Itapetim saibam uma coisa: as terras de diversos municípios aí na região são endodivisões (divisões internas), são áreas, nacos, pedaços dos chãos da antiga Flores.

E como é que a naturalidade (local de nascimento) de Rogaciano Bezerra Leite entra na história?

Você conhece o provérbio que diz que “o futuro a Deus pertence”. Uma pessoa que nasce e é registrada no seu município não tem qualquer condição de saber se, mais tarde, tempos depois, anos, décadas ou séculos adiante o território de um município vai ser desmembrado.

Digamos, só por hipótese, que a menina Aracê, a mais velha daquelas duas que os índios adotaram na antiga terra de Flores em 1589, transformou-se em uma escritora famosa. Ainda no terreno da hipótese, Aracê foi registrada como filha de Flores  – portanto, era florense. Flores é município independente desde 26 de maio de 1858, confirmado por lei de 03 de agosto de 1892.

Em 1º de julho de 1909 Afogados de Ingazeira, por sua vez, torna-se município (era distrito desde 1836), desmembrado do território de Flores. Digamos que as terras de Aracê estivessem na parte que ficou para o município de Afogados de Ingazeira. E agora, o registro de nascimento de Aracê tem de ser mudado, para substituir Flores por Afogados de Ingazeira?

Mas a história anda... São José do Egito (que era distrito desde 21 de março de 1872) torna-se município independente, desmembrado de Afogados de Ingazeira. As terras de Aracê ficaram com São José do Egito. E aí? Nossa personagem Aracê, que inicialmente era de Flores, depois mudou-se para Afogados de Ingazeira, agora terá de registrar-se como filha de São José do Egito...

Por fim, das terras de São José do Egito sai a área territorial de Itapetim, transformado em município em 29 de dezembro de 1953... e a parte do antigo território de Aracê ficou com Itapetim. Afinal, qual a naturalidade dessa moça Aracê? Ela foi transformada em trânsfuga de sua própria terra, com um novo registro de nascimento a cada desmembramento territorial, a cada divisão municipal que inclua o pedaço de chão onde ela se criou...

Percebe-se que isso não faz sentido. Do mesmo modo com Rogaciano Leite. E se o Sítio Cacimba Nova, o chão onde ele nasceu viesse a compor o território de um novo município, desmembrado de Itapetim, qual seria a cidade de nascimento de Rogaciano? E quem assegura que o futuro não reserve outras divisões municipais? Basta ver o tamanho das comunas, cidades ou o que corresponda a município em diversos países da Europa – lugares pequenos com pouquíssimos milhares, senão centenas, de moradores e uns poucos quilômetros de área.

Acham que isso é impossível? Nasci na mesma terra de Gonçalves Dias e Coelho Netto: Caxias, Maranhão. O sítio onde Gonçalves Dias nasceu atualmente faz parte de outro município, ali vizinho a Caxias. Agora imagine se o pai de Gonçalves Dias, um português, para evitar o clima “pesado” contra os lusitanos, tivesse ido com a esposa grávida para as matas do hoje município maranhense de Itinga do Maranhão, cujas terras integravam o território da antiga Caxias. Ora, Itinga saiu de Açailândia, que saiu de Imperatriz, que saiu de Grajaú, que saiu de Pastos Bons, que saiu de Caxias. Então, o poeta Gonçalves Dias, que nascera caxiense, teria de mudar a certidão e tornar-se pastos-bonense, depois grajauense, depois imperatrizense, depois açailandense e, por fim, itinguense?

Decididamente, não faz sentido. Rogaciano Leite nasceu em 1920, quando a terra em que respirou pela primeira vez era parte do município de São José do Egito, e assim deve constar de sua certidão de nascimento. Quando Rogaciano morreu no Rio de Janeiro (RJ), em 7 de outubro de 1969, Itapetim, tornado município em 29 de dezembro de 1953, tinha completado 16 anos...

Câmara Cascudo, em sua apresentação ao livro “Carne e Alma”, de Rogaciano Leite, publicado em 1950, diz, com data de 10 de junho de 1948, que “Rogaciano revive as florestas de Gonçalves Dias”. Pois a menção ao meu conterrâneo caxiense lembra-me o quanto Gonçalves Dias, em seus poemas, cantou Caxias. Se não bastasse a certidão de nascimento, poemas de Gonçalves Dias atestariam sua naturalidade...

Assim também com Rogaciano Leite. Ele cantou a sua terra. No longo “Poema de Minha Terra”, depois de declarar que “nasceu num recanto do meu sertão – que amo tanto!”, que se criou “lá na Fazenda”, Rogaciano não se faz de rogado e, como em uma rogação, ao final da poesia, data: “São José do Egito - Pernambuco, 1943”. Seis anos antes, no poema “Uma Noite na Fazenda”, dedicada a seu irmão José Bezerra Leite, Rogaciano datava assim: “Cacimba Nova – São José do Egito, 1937”. Dois anos depois, compusera “Flamboyant (Enfermo)”, para esta árvore, que morria; e na datação: “Cacimba Nova – São José do Egito, 1939”. Aqui, Rogaciano estava com 19 anos e encerra o poema, um soneto decassilábico, escrevendo que ia “morrer, talvez, com vinte e dois”.

Na “Canção de Agradecimento”, para pessoas de Santos (SP), que “concorreram para a publicação” de seu livro “Carne e Alma”, Rogaciano Leite, em décimas heptassílabas (estrofes de dez versos de sete sílabas) diz de onde vem e quem é: no primeiro verso: “Venho de longe [...]”. E nas linhas iniciais da terceira estrofe: “Sou José: numa cilada / Venderam-me a Faraó!”

Essa “Canção”, datada de 13 de novembro de 1950, uma segunda-feira, não consta do livro “Carne e Alma”. Foi publicada em uma edição de domingo, 19 de novembro de 1950, do jornal “A Tribuna”, de Santos. Página inteira. Convém anotar que poesia, no mais das vezes, é uma forma “diferenciada” de dizer certas coisas. Na “Canção do Agradecimento”, os dois primeiros versos da terceira estrofe – “Sou José: numa cilada / Venderam-me a Faraó!” – também podem se referir à cidade de nascimento de Rogaciano Leite. O antropônimo “José” e o título “Faraó” podem estar evocando uma das origens do politônimo (nome de cidade) “São José do Egito”. A imagem de São José, que veio para a cidade, apresentava o santo calçado com botas, o que seria um costume do Egito. A estória pegou e terminou compondo o nome do município. Ainda por cima, classificaram-se na cidade três “dinastias” de poetas (“faraós”) nascidos em São José do Egito: a primeira seria a de Antônio Marinho do Nascimento (5/4/1887 – 29/9/1940), chamado “A Águia do Sertão” e considerado um dos maiores cantadores de todos os tempos; a segunda, de Rogaciano; e a terceira, de Lourival Batista Patriota, o Louro do Pajeú (6/1/1915 — 5/12/1992), considerado “O Rei do Trocadilho” e também um dos mais famosos poetas populares do Brasil. Todos os três “faraós” nascidos em terras de São José do Egito. Segundo o “site” da Prefeitura de São José do Egito, “esses homens, com seu lirismo, ajudaram a disseminar as sementes da poesia pelo mundo”.

Enfim, do ponto de vista legal e, sobretudo, poético-literário-cultural, Rogaciano Bezerra Leite nasceu em território do município de São José do Egito, 33 anos antes da emancipação de Itapetim. Como, pelo que se sabe, Rogaciano não tirou segunda via de seu registro de nascimento entre 1953 e 1969, quando morreu, nasceu, viveu e faleceu como egipciense.

No mundo do Direito, há expressões como “verdade registral”, “verdade biológica” e “verdade socioafetiva”. Eu acrescento outras duas: “verdade histórico-cultural” e “verdade geopolítica”. O Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), diz, em seu Artigo 1.604, que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”. Forçando a interpretação (já que a Lei é ela e a interpretação dela), se o registro de Rogaciano o põe como criança nascida em São José do Egito, daqui ele é. Talvez, se ele perdesse sua certidão e fosse tirar uma segunda via após a autonomia de Itapetim, ele sairia do cartório com um registro dando-o como itapetinense, em razão de o lugar onde nasceu agora pertencer ao território de Itapetim. Mas não foi o caso.

Vencida a “verdade registral”, temos a “verdade biológica”: Rogaciano, quando nasceu (e nascer é ato biológico), nasceu em terras do município de São José do Egito.

Quanto à “verdade socioafetiva”, até os versos (como listados acima) e, quem sabe, outros textos rogacianianos mencionam São José do Egito com os elementos básicos de formação de vida de uma criança, de um menino, de um adolescente... O maior registro de nascimento é esse que se vê e não se vê na alma do ser nativo, nascidiço.

A “verdade histórico-cultural” tem muito da “verdade socioafetiva”: são os elementos da terra natal identificáveis na obra do escritor.

E a “verdade geopolítica” é a que contempla Itapetim, antigo distrito de São Pedro das Lajes, depois Itapetininga até a redução para o atual topônimo: por um ato político-administrativo, legal, o antigo distrito de Itapetim é emancipado e seu território, desmembrado do município-pai (São José do Egito), vem com o pedaço de chão (geografia) em que Rogaciano Bezerra Leite nasceu.

A “verdade geopolítica” está ao lado de Itapetim. Por exemplo: Se um turista vai a São José do Egito e diz que quer conhecer o lugar onde Rogaciano nasceu... tem de ir até Itapetim. Ponto. É a “verdade geopolítica” (um pedaço de terra que, por um ato político de redivisão municipal, passou a fazer parte da geografia do novo ente federativo municipal). Agora, se um turista for a Itapetim e pedir para ver uma cópia da certidão de nascimento... ter-se-á de apresentar aquela, e única, que foi assentada no cartório da velha São José do Egito...

Do ponto de vista legal, pode haver dupla (ou tripla etc.) nacionalidade. Mas não se sabe de dupla naturalidade. Pois a naturalidade é uma questão de vida, e a nacionalidade, uma questão de viver. Em termos de vida, só se nasce uma vez  -- pelo menos cada um de nós, aqui na terra. Em termos de viver, é uma questão de modo – “modus vivendi”, uns tempos, está em um país; outros tempos, naqueloutro...).

Enfim, não se pode sair por aí alterando a certidão de nascimento de todo filho ilustre que nasceu em lugares que foram assumidos por novos municípios. Se olharmos detidamente a genealogia dos Estados e de muitos municípios, constatar-se-á o quanto em muitos deles ocorreram endodivisões, bipartições, tripartições, multipartições. Um nascituro e seus pais não têm controle sobre isso. A cidade de quem nasce é a cidade onde ele nasceu. Claro, há a possibilidade legal de, por meio da Justiça, adequar-se a uma nova realidade geopolítica, desde que isso seja uma expressão de vontade do indivíduo ou uma determinação judicial mandatória, imperativa, obrigatória.

Quem compulsar e pesquisar biografias poderá, sem muito esforço, com algumas averiguações, confirmar diversas situações de pessoas ilustres que nasceram em um determinado lugar que depois passou a território de outro – e nem por isso se está deblaterando ou requerendo a naturalidade legal forçada dos filhos ilustres. Outros tempos e outros grandes filhos poderão nascer nos dias que hão de vir...

Portanto, em uma só oração, ou frase: Rogaciano Bezerra Leite é egipciense nascido em terras atualmente itapetinenses.

A propósito, o IBGE grafa “egipsiense”, o que é evidente lapso. Por outro lado, tenho que a formação correta do gentílico para quem nasce em São José do Egito deveria ser “egitense”, por vir de “Egito”, ou, se quisesse, “são-joseense”, designativo para habitantes de pelo menos 14 municípios no Brasil. Por outro lado, pode-se argumentar que “egípcio” é “relativo ao Egito”; assim, de “egípcio” faz-se “egipciense”, o que se constitui em uma evidente “terceirização” na formação de adjetivo gentílico, já que a palavra “egípcio” não consta do nome. Em favor dos egipcienses, também pode-se dizer que a palavra “soteropolitano” e “ludovicense” não derivam de palavras que estejam na composição do nome Salvador (BA) ou de São Luís (MA) – apenas são, “terceirizadamente”, gentílicos provindos da forma grega de “Salvador” (“sotérion”) e da forma latina de “Luís” (“Ludovicus”). Melhor ficar quieto...

Encerrando, transcrevo o que já escrevi sobre assunto idêntico, acerca da naturalidade de Gonçalves Dias, que nasceu em Caxias mas seu chão de nascimento agora está no município de Aldeias Altas, como dito lá pelos começos deste texto:

“[...] O debate é válido. E, claro, tenho minha própria opinião, se é que ela vale algo.

Minha opinião até agora é a de que não parece ser justo o querer transferir-se uma naturalidade em razão de endodivisões geográficas ou repartições internas de um território. Se isso vingasse, ocorreriam inúmeras situações de sucessivas "atualizações" de certidões de nascimento de uma mesma pessoa.

Será lógico, racional, nascermos em um município e não termos segurança histórica e legal de que não nos mudarão a naturalidade, pelo simples fato de que não podemos antever como as divisões e redivisões de um dado território acontecerão ao longo do tempo?

E como ficaria a situação ou a certidão de nascimento de pessoas que nasceram em terras de diversos Estados que, em séculos passados, pertenceram e depois "despertenceram" a outros Estados. São Paulo já pertenceu ao território do Rio de Janeiro, a cujo governo “ficou sujeito, tanto administrativamente como no Judiciário”, como anotou Ildefonso Escobar. Mais: São Paulo já foi também do território da Bahia, de cujo governo “ficou dependente”.

Por sua vez, o Paraná já pertenceu ao estado de São Paulo.

Partes dos territórios de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso já foram de São Paulo.

A capital paranaense, Curitiba, e o estado de Santa Catarina já foram paulistas.

São Paulo também já foi e "desfoi" do território do Rio de Janeiro, em um puxa-encolhe que, como sanfona, resfolegou, veio e voltou do século XVI ao século XVIII.

Isto posto – é só uma amostra... –, dever-se-ia aplicar a lógica das sucessivas mudanças de naturalidade ao sabor e ao longo desses processos de redivisão e endodivisão? Faz sentido isso? Ora!... Uma hora determinado território é de município ou Estado ou país "X", outra hora passa (ou pode passar) a pertencer a município, estado ou país "Y".

Então, ninguém está seguro de sua naturalidade. Haja tempo, esforço e outros recursos para a revisão de certidões de nascimento e atestados de óbito...

É... Pelo visto, corre-se o risco de não sabermos em que terra nascemos.

E, pior, não teremos nem onde cair mortos...”

* EDMILSON SANCHES

(Escrito em 1º de julho de 2020, no centenário do Poeta e Jornalista. FOTOS: Rogaciano Leite e “Carne e Alma”, seu livro maior: criador e criatura.)