DEIXE SUA CRIANÇA TOMAR CONTA DE VOCÊ...
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Eu conheço esta criança. O rosto sério... O ar grave...
Essa criança governa o homem. O homem tem medo dessa criança. Medo de envergonhá-la. De não merecê-la.
Eu não posso mudar a criança. Posso colocar nela uns enfeites, tentá-la com um novo brinquedo. Mas é o espírito dela que brinca comigo.
A criança é anterior ao homem. A criança é mais velha que eu.
E eu aprendi a respeitar os mais velhos.
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Caxias é a fundação, a base, o baldrame, enfim, tudo o que dá sustentação ao erguimento da edificação de mim.
Tenho orgulho e, mais que isso, tenho prazer da infância riquíssima que tive. Não me lembro bem das coisas que fiz há cinco, dez, vinte anos... mas como estão vivos e vívidos os ontens vividos na minha meninice!
As ruas onde morei... As escolas onde estudei...
Menino pobre de infância rica: bom nadador, atravessava de um só fôlego o Rio Itapecuru (que nem de longe se parece com os restos mortais líquidos e incertos de hoje). Décadas depois, em Fortaleza, estava fazendo mergulho no mar, em profundidade de 40 metros, como mergulhador submarino (mergulho autônomo).
Ainda em criança, costumava ser levado pelos parentes e amigos para pescar, pois eu era o único com “coragem” para, no meio ou nas margens do rio, descer da canoa, afundar-me nas águas, acompanhar a linha da vara de pescar e ir recuperar o anzol que corria o risco de se perder – ou porque fisgara o muçum que teimava em não sair da loca, ou porque, teimando em não se render, o peixe enroscara a linha em vegetações, troncos e galhos no fundo do rio. Era uma festa cada anzol recuperado (devidamente acompanhado do habitante fluvial que o engolira).
Infância rica de menino pobre: nadar no Porto dos Homens; espiar, por entre o mato, as garotas no Porto das Mulheres. Pegar frutas na quinta do seu Antônio João. Buscar as doces canaranas que se derreavam na outra margem do rio, quebrando-as debaixo d’água, para que o vigia não percebesse o barulho e não atirasse com sua espingarda com carga de sal. Acordar cedinho para catar no chão os caroços das sapucaias abertas na noite pelos morcegos.
Na quinta da Maria Poquinha e em outras quintas e cantos, muito antes de surgir os impedimentos legais (ainda bem que vieram!), caçar passarinhos, de baladeira (não se chamava estilingue), marcando no cabo a quantidade de bichinhos que se pegara. Preparar arapucas e outras armadilhas para bichos de pena e bichinhos do mato. Criar guriatã, canário, sabiá (inclusive sabiá-cagona), pipira, anum, vim-vim (não se chamava gaturamo). Ouvir o canto da rolinha fogo-apagou, do tiziu (passarinho que dava saltos mortais no ar e pousava seguro no galho).
Buscar pequi na chapada, onde também se colhiam frutinhas como coroa-de-frade, canapu, seriguela, cajá, umbu...
Pegar “carona” em carros e carroças, dependurando-se na traseira desses veículos e fazendo pequenas “viagens”. Andar – muuuuito – de trem, de São Luís a Teresina, memorizando as estações do percurso – entre outras, Aarão Reis, Cantanhede, Carema, Caxias, Cristino Cruz, Urichoca.
Jogar futebol no Campinho, acima do Bar Vavá, próximo à estação de ferro, e participar de brigas, depois de jogar areia ou cuspir no rosto do garoto adversário ou desfazer com os pés uma risca no chão (“Aqui é a tua mãe e aqui é a mãe dele”).
Jogar pedras rente à água do rio para saber quantos filhos ia fazer. Banhar-se no rio até os olhos ficarem vermelhos e assoprá-los para voltarem a ficar “brancos”, senão a taca no lombo seria certa. Catar cobre, alumínio e outros metais para vender no quilo.
Nas quitandas do Natinho, do seu Manoel e de outros Natinhos e Manoéis, fazer compras de óleo em medida, querosene em litro para as lamparinas, quarta de arroz, meio litro de farinha...
Bater em bico de lamparina para o murrão sair. Socar arroz no pilão e catar as escolhas no quibano. Limpar as cinzas do fogareiro feito de barro em lata de querosene “Jacaré”. Comprar cuim na usina de arroz e misturá-lo com o resto de comida de pratos e panelas (“lavagem”) e colocar nos cochos para alimentar os porquinhos.
Deitar na rede, enrolando-se todo de medo da “pesadeira” ou da grande porca que andava pelas ruas altas horas da noite – os adultos diziam.... Ficar cheio de receios e temores ao ouvir a rasga-mortalha grasnando longe, pois se cantasse sobre uma casa significaria que nela, em breve, morreria alguém.
Disputar campeonatos de futebol (sobretudo no clássico Galícia, da Rua da Galiana, contra o Palmeiras, da Rua da Palmeirinha). Fazer e vender gaiolas de buriti e papagaios de papel (sura era o papagaio sem “rabo” e a curica, com; não se chamavam de pipas). Quebrar lâmpadas e transformar o vidro em pó, para fazer cerol (que era passado com as mãos na linha esticada em inúmeras voltas no quintal, onde ficava até secar), e depois disputar nos céus quem cortava a linha de quem.
Jogar triângulo ou chucho, inclusive “de revestrés”. Jogar castanhas. Jogar “casa ou bila” com peteca (não se chamava bolinha de gude), fazendo “casas” (buracos), sobretudo após uma chuva, ou acertando uma na outra com o “cocão” (peteca grande) ou, na vez do outro jogador, substituindo a peteca pela menor que se tivesse (a “mirulinha”).
Colecionar “dinheiro”, que eram as embalagens de carteiras de cigarro – Minister, Hollywood, Continental, Gaivota... O papel brilhante, metálico, dentro das carteiras, era a “cédula” de menor valor.
Subir nos arcos da ponte de cimento. Jogar a câmara de ar e depois jogar-se da ponte de ferro e ir boiando, Rio Itapecuru abaixo, até o porto mais próximo de casa. Banhar-se no Ouro, no Ponte, na Maria do Rosário, no Iamun (Inhamum). Divertir-se na Veneza e suas piscinas e lagos de água mineral e trazer de lá latas cheias de lama medicinal.
Ver os potes “suando” na bilheira, sinal de água fria, bebida em copos de alumínio brilhando de ariado. Deliciar-se com os doces em vasilhames no petisqueiro, cristais na cristaleira. Sentar em peitoril e, à noite, levar para a calçada mochos, tamboretes e, o fino da bossa, cadeiras de macarrão e cadeiras preguiçosas, e ouvir estórias, “causos”. Ouvir também a Rádio Mearim de Caxias e o programa do Jairzinho na Rádio Sociedade da Bahia, onde também se ouvia a novela “Direito de Nascer”, com Albertinho Limonta beijando a Isabel Cristina e Dom Rafael dando bronca e Mamãe Dolores sofrendo... (Ai, Dom Rafael, / eu vi ali na esquina / o Albertinho Limonta / beijando a Isabel Cristina. // A Mamãe Dolores falou: / “Albertinho, não me faça sofrer; / Dom Rafael vai dar a bronca / e vai ser contra o direito de nascer”.).
Ler “romances” (nome que se dava aos folhetos de literatura de cordel, como “Pavão Misterioso”, “O Cachorro dos Mortos”, “O Valente Cancão de Fogo no Inferno”...). Ler muitos livros na Biblioteca Pública Municipal, desde as enciclopédias "Delta-Larousse" às coleções de Monteiro Lobato e também "Os Irmãos Corsos", "Tesouro da Juventude" e muitos outros títulos e coleções... Sem falar nas revistas em quadrinhos, lidas e depois trocadas em frente ao Cine Rex, mas, sobretudo, em frente ao Cine São Luís. Antes, aos cinco, seis anos, já passara pela “Carta de ABC” e “cartilha”, e, sentadinho no chão de terra batida, já ouvira muito Seu Miguel, paraplégico, em uma rede em sua casa, lendo e contando “A História do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França” – livro antigo de que consegui um exemplar idêntico décadas depois.
Ceder ao vizinho, através da cerca feita de talos, xícaras de café em pó, açúcar, sal, arroz, óleo. Erguer canteiros e neles plantar coentro, alface e cebola em folha, para serem vendidos em molhos no Mercado Municipal (hoje a prefeitura).
Auxiliar na construção de casas de taipa e ajudar a cobri-las com folhas de palmeiras. Estudar na escolinha de dona Maria Luíza da Luz Mousinho e ter que bater de palmatória nas mãos dos coleguinhas porque era o único a saber soletrar “helicóptero” e “exercício” (sabia até soletrar “Matias”: eme-a-má ti-gui-ti, corta o “t”, pinga o “i”, tira daqui, bota prali, esse-ás Matias...).
No São João, brincar brincadeiras de roda, espocar foguetes, jogar traques e bombinhas, dançar quadrilha, ter madrinha de fogueira e faca na bananeira...
Comer bolo na festa de Reis, ouvindo os tambores e a cantoria (“Ô meu Divino Espírito Santo!”). Criar carneirinhos que eram presentes de aniversário e ensiná-los a marrar, para desespero da mãe, que achava que o animalzinho poderia quebrar a cabeça do “treinador” (e o ensinamento dos mais velhos: “De carneiro que recua é grande a marrada”).
Brincar de pegador, bombaquim, corrida do saco (brinquei muito – era campeão – na Rua Bom Pastor), passa anel (em uma roda de meninas e meninos, colocar uma pedrinha entre as mãos da pessoa escolhida, geralmente uma meninazinha na qual a gente estava de olho...). Brincar de “boca de forno”:
– Boca de forno? – Forno!
– Jacarandá – Dá!
– Se eu mandar? – Vou!
– E se não for? – Apanha!
– Farão tudo que seu mestre mandar? – Faremos todos!
– E se não fizerem? – Ganharemos bolo!
– Remã, remã...
Após o “mestre” dizer “remã, remã”, ele completava com uma tarefa, por exemplo: “Remã, remã, quero que me tragam uma pedrinha de cor preta”; ou “... um caroço de manga”; ou a embalagem de uma determinada carteira de cigarro (que, em outra brincadeira, a ela era atribuído um valor de uma das cédulas de dinheiro da época; etc. etc. Quem não trouxesse, ou quem trouxesse por último (ou outro critério), levaria o “bolo” – que, como sabemos, não era uma comida, mas uma pancada com régua, palmatória, ou com a mão na mão de outrem.
Essas brincadeiras, jogos, tarefas, isso tudo e muito mais, a sadia riqueza que se deve acumular e que ninguém pode roubar.
Mas ocorre o infanticídio, e daí surge o homem, lutando por poucas coisas e brigando por muitas causas.
Feliz Dia da Criança!
* EDMILSON SANCHES
Fotos:
Crianças brincando e Edmilson Sanches menino, ministrando conferência em Brasília e andando pelo Quartier Latin, bairro de intelectuais e boêmios de Paris.