“Me dá um pedaço de pão, moço” – e a menina, por algum tempo, ficou olhando o homem a quem se dirigira com aquela solicitação amarga, molhada de timidez. Instantes que pareceram séculos!
O homem não se percebeu da pequenina, daquele farrapinho de gente que, diante dele, esperava o atendimento. Não. O homem continuava indiferente. Alheio ao quadro humano que se prostrara diante dele, continuava com os olhos pregados adiante, nas suas reflexões.
E a menina insistiu:
“Me dá um pedaço de pão, moço”. O homem não se mexeu ainda. Estava absorto. Seus pensamentos perdidos, distanciados dali, donde estava. Um boteco sórdido, sujo. Infecto. Ele há muito que chegara e, como de hábito, sentara-se no seu banco costumeiro, próximo da porta de saída.
Ali, estava sempre, todos os dias. Entrava e começava a bebericar uma pinga ordinária. Ninguém lhe sabia o nome de batismo, o nome de família. Chamavam-lhe de “Zé Cachaça”. Não se aborrecia com a alcunha. Sorria e continuava ali, ali naquele banco grudado a uma mesa tosca de caixão de querosene. E era sempre isto.
Mas, diante dele, agora, pela primeira vez, aquela menina, uma pequena sem identificação, vestida de pobreza. Uma garota no abandono, filha do desamparo, na renda da mendicância. Viu o homem na mesa e dele se aproximou. Fez o pedido mais uma vez:
“Me dá um pedaço de pão, moço”.
“Zé Cachaça” mantinha o silêncio. Tudo nele uma expressão de sofrimentos íntimos. Tudo nele a denúncia de todos os desesperos. Aqueles olhos pregados para diante, espichados, fixando coisas distantes, exigiam dos outros, os que o observaram, uma porção de reflexões.
Parece que para ele, nestes momentos, o boteco não existia. Ele só no pequeno botequim, naquelas dimensões mínimas entre um balcão improvisado, um espaço estreito de chão e a porta. Ele, sentado no seu banco, ia ficando e ia bebendo a sua “branquinha”. Na sua, ia jogando as pontas de cigarro. Não era outro o movimento que fazia. Uma ou duas vezes, sem olhar para o dono do boteco, pedia a renovação da bebida. Mas a menina repetiu:
“Me dá um pedaço de pão, moço”. E ficava esperando. A cena durou mais alguns instantes.
Com o homem, o seu silêncio. Já a menina esperava. Depois, resolveu sair, deixar o botequim, a espelunca. Ninguém mais a interessava ali, nem o dono, nem os poucos fregueses que saíam e entravam. Toda a sua atenção estava no “Zé Cachaça”, naquele homem que não lhe prestara nenhum interesse, nenhuma atenção. E saiu. À porta, ainda olhou para ver o homem no isolamento de si mesmo. Espiou-o lá da porta e desapareceu. Foi embora a menina.
O homem bebeu mais um pouco. Com a manga da camisa, enxugou a boca. Acendeu mais um cigarro. Levantou-se e foi até a porta. Ficou lá alguns momentos e voltou para o seu lugar. Agora, falava, dirigindo-se ao dono do boteco:
– “Conhece a menina? Não. Não conhece... e eu é que não devia conhecê-la... Mora ali no bairro... Tem a idade duma filha que eu tenho. O mesmo tamanho. Não tive coragem de lhe dá a esmola... Está compreendendo? Parecia a minha filha... a Luizinha... Fiquei com vergonha... E se fosse a Luizinha?
– Olha, me dá mais uma cachaça aí”.
Levantou-se e saiu. Na rua, tantas crianças correndo para casa. Um sol lá no alto alumiando a terra. Na lembrança de nós, aquela menina. Aquele homem e a sua mensagem de desespero. “E se ela fosse a Luizinha...”
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Joral do Dia”, 29 de janeiro de 1967 (domingo).