– 2 de janeiro, há três anos: a mãe que se despediu da vida e a vida que continua na filha.
*
Há três anos, em 2 de janeiro de 2021, um sábado, falecia, em Caxias, Dona Francisca do Rêgo Silva, mãe de Tita do Rêgo Silva, artista plástica caxiense, residente na Alemanha, autora de vários livros e membro da Academia Caxiense de Letras (ACL).
Dona Francisca morreu aos 98 anos, de causas naturais, advindas de seu quase um século de existência. Sua vida foi feita de união:
– nasceu em União, município piauiense que completou exatos 170 anos de História no ano de 2023, com sua condição de vila em 1853;
– trabalhou arduamente em Caxias em uma companhia têxtil de nome União;
– e era o fator de união de sua grande família: o marido, Antônio Rodrigues da Silva (o “Alemão”, também falecido), sete filhos – José de Arimatéia, João Carlos, Maria das Graças, Maria Ederis, Célia de Fátima (falecida), Maria Angélica e Tita –, além de, até dezembro de 2022, 20 netos e 17 bisnetos.
Tita, a última dos sete filhos e filhas, recebeu o nome da mãe, acrescido de Maria: Maria Francisca do Rêgo Silva. A convite de Tita, compartilhei bons momentos com Dona Francisca em cafés da manhã em sua residência, no Cangalheiro, bairro de Caxias. Simpática, agradável, lúcida, Dona Francisca era dessas mães e avós que filhos e netos adoram ter.
Essas duas Franciscas, mãe e filha, foram pessoas de minha lembrança e menção no pronunciamento que, designado pela Academia Caxiense de Letras, fiz na noite de 17 de agosto de 2019, na posse de Tita na ACL, quando também era comemorado o aniversário de 22 anos daquela Casa de Letras.
Com carinho e em memória de Dona Francisca, transcrevo a seguir o que escrevi e falei. Dona Francisca se faz presente pelo ser humano que é e foi e se mantém presente por meio de sua descendência, em que se encontra sua talentosa filha Tita.
Abraço de lembranças e solidariedade à colega acadêmica Tita, aos irmãos e a toda a Família. (E. SANCHES)
*
O INVISÍVEL SUSTENTA O VISÍVEL
“Quando cada um de vocês, quando cada um de nós passamos pelo batente da porta de entrada deste prédio, é quase certo que, consciente ou inconscientemente, nos sentimos abraçados e abrigados por suas paredes e protegidos por seu teto e telhado.
O que quase ninguém sente ou reflete é que portas e paredes, tetos e telhados fariam nenhum sentido se, abaixo deles, escondida, não houvesse uma base; se, abaixo de portas e paredes, tetos e telhados, não houvesse, invisíveis, as fundações.
Senhoras e Senhores, ainda que assomem vistosos, embora apareçam portentosos, telhados e tetos, paredes e portas – repita-se – não existiriam se, abaixo deles, algo não lhes desse sustento, alguma coisa não lhes servisse de base – as fundações.
São elas, Senhoras e Senhores, as fundações, a razão de ser, a condição de existir não apenas daquilo que é tanto aparência – as paredes – quanto do que é aparente – os telhados.
É neste ponto, Senhoras e Senhores, que prédios e pessoas têm algo em comum: aquilo que sustenta tanto prédios quanto pessoas é o que, à maneira de “icebergs”, fica escondido, mantém-se debaixo, permanece submerso. Nos prédios o que os sustenta fica no fundo da terra; nas pessoas, o que as sustenta fica no fundo da alma.
Como se depreende, Senhoras e Senhores, o invisível sustenta o visível.
[...]
Em uma residência da Rua Clodomir Cardoso, em um quarto onde uma das paredes dá para a calçada, nasceu – e ali até os 14 anos se criou – Maria Francisca do Rêgo Silva, que, por um desses inocentes e carinhosos atos de criação de nomes, veio a ser conhecida, aqui mas sobretudo no mundo, como Tita – uma forma abreviada e docemente espontânea do nome “Francisca”, que os de casa reduziam para “Tchica” e, depois, “Tita”.
Como um apelido íntimo de meio de sala e de fundo de quintal pôde ganhar o mundo só Deus, pelo talento enorme dessa caxiense, explica...
Tita foi a “rapa do tacho” do casal Francisca do Rêgo Silva e Antônio Rodrigues; era a caçula entre os sete irmãos e irmãs: o primogênito José de Arimatéia, primeiro caxiense a se formar em Economia; João Carlos, administrador; Maria das Graças, professora; Maria Ederis, bibliotecária; Célia de Fátima, administradora (falecida); e Angélica, também administradora.
O irmão mais velho, Arimatéia, foi para Brasília e, depois, foi levando os irmãos. Estudaram. Formaram-se. Cinco permaneceram na capital federal, um voltou para o Maranhão e Tita viria a ganhar o mundo.
Aos 14 anos, a menina que, como os irmãos, frequentava a escola (o Caxiense) por conta de uma bolsa de estudos, foi para Brasília e, meio assim contra a vontade, junto com o curso regular, foi matriculada na Casa Thomas Jefferson, para estudar Inglês. Tempos depois, por ser a única que dominava aquela língua estrangeira, foi ganhando espaços na empresa aérea em que trabalhava – espaços que iam além do Brasil, pois Tita começou a conhecer diversos países.
E aquela menina que havia sido parida em um quartinho de uma residência simples no bairro caxiense do Cangalheiro iniciou uma autogestação em sua barriga mental, unindo as células de memórias de que ela se emprenhara e de células de experiências em que se empenhara na infância e início da adolescência. Explique-se: a gênese do ser artístico-cultural que Tita é, como artista plástica formada em curso superior na Universidade de Brasília, a origem da verdadeira explosão de sucesso, de reconhecimento e valorização internacional que Tita tem sobretudo na Europa e na Ásia, isso tudo teve início na observação das atividades que seus pais desenvolviam.
Junto com as traquinagens e peraltices que fazem rica a infância de uma criança pobre, junto com as brincadeiras no quintal de casa e o Rio Itapecuru, a criação de jabutis, o forno de assar, a procura de tucum no mato, enfim, como Tita diz, com essas “coisas bem de interior”, aquela meninazinha olhava atenta o trabalho do pai, seu Antônio, já falecido, e o trabalho da mãe, Dª Francisca (que conheci hoje, 17 de agosto de 2019, com seus 96 anos de vida, lúcida e risonha).
Dona Francisca era costureira e seu Antônio, carpinteiro e marceneiro. No trabalho da mãe costureira, Tita observava e absorvia os jeitos e trejeitos próprios do ofício na máquina Singer operada pela mãe. A menina encantava-se com o colorido dos panos, a forma dos retalhos, o modo como essas peças e pedaços eram cerzidos, costurados, unidos...
Ao lado da atividade de carpintaria, quando fazia peças de madeira para obras pesadas, como estruturas e vigamentos, o pai de Tita fazia, em sua oficina, objetos e móveis e outras peças de trato mais refinado, próprio da marcenaria. E, dia a dia, a menina Tita observava também o trabalho do pai dando formas à madeira. E, dia a dia, a menina Tita foi se engravidando de belezas e sutilezas, com um mundo de formas e cores se desenhando na infinita tela de sua mente e de seu saber, depois tornado habilidades, habilidades que chegaram ao estado de arte desde 1989, há exatamente 30 anos, quando Tita mudou-se para a Alemanha e suas obras mudaram-se para o mundo todo, estando presente e sendo vistas em casas residenciais, órgãos públicos, instituições empresariais, museus de renome e em espaços privilegiados de grandes colecionadores.
Pela segunda vez, Dona Francisca e seu Antônio geraram Tita: primeiro, pelo amor de pais; depois, por suas habilidades profissionais. Na feitura e formação da merecidamente famosa xilogravurista, os pais de Tita foram realmente definidores e definitivos. Em grego, a palavra “madeira” é “xilo-”; e a palavra “gravura” tem a ver com os desenhos, formas e cores dos retalhos de panos de Dona Francisca.
Sim, Tita, teus pais te geraram pelo menos duas vezes: o ser humano que és... e a artista igualmente humana que continuas sendo.
Mas, Senhoras e Senhores, as coincidências e conspirações do Universo, todas positivas, não terminam com a Vida recebida e a Arte percebida por Tita de seus pais.
Em Brasília, Tita faz, pela segunda vez, o vestibular para Arquitetura. Desta vez, no ambiente estranho e hostil do governo ditatorial da época, quando Tita foi puxada por mãos militares e foi retirada de camburão por mãos amigas, desta vez, naquele ambiente de confronto, ao preencher a inscrição para o vestibular, Tita cometeu um erro que deu certo: por um lapso, escreveu um número que não correspondia ao curso de Arquitetura, mas, sim, ao curso de Artes Plásticas.
Anos depois, Tita estava formada. E, quando finalmente se decidiu pela Alemanha, nem dera em si que seu pai, Antônio Rodrigues, era conhecido justamente por... Alemão. Este apelido viera pela associação do tamanho grandão de seu pai com o futebol agressivo que ele jogava. Assim, juntando forma e força, o pai de Tita ficou conhecido como Alemão – e nem de longe pai e filha intuiriam o que o destino reservava para a mocinha arteira que se formaria artista.
Essa é nossa Tita. Mulher de duas nacionalidades... mas de uma só cara.
Essa é a nossa Tita. Mulher saudosa e saudavelmente caxiense, cidadã conscientemente cosmopolita e artista internacionalmente consagrada.
Essa é a nossa Tita. Mulher de Caxias, arte do mundo. Alemanha... Áustria... Bélgica... Coreia do Sul... Espanha... França... Holanda... Itália... Japão... Luxemburgo... Portugal... República Tcheca... Suécia... e outros países mais onde Tita esteve com suas exposições e onde sua Arte está, valorizada cultural e financeiramente.
A Arte e a Artista são partes de um todo. Um todo que inclui as origens, as raízes de vida e ofício de Tita. Onde Tita está, onde sua Arte está, estão Caxias, o Maranhão, o Nordeste, o Brasil – e mesmo quando europeíza o tema, os traços são os que se veem e se reconhecem em pessoas e lugares, em memórias e História, em coisas e causas caxienses, maranhenses, nordestinas, brasileiras. E Tita sabe disso. Pois sabe que, pelo menos aqui na terra, só se nasce uma vez, só se tem infância uma vez... e tudo isto é para sempre. E Tita disto não se desgruda, nem quer.
É essa mulher, Senhoras e Senhores, que a Academia Caxiense de Letras recebe. Autora de mais de 30 livros lançados em alemão e mais de 10 livros em que contribuiu e coassinou como ilustradora.
É essa mulher que esta Academia recebe. Mulher que conversava com Jorge Amado, admirador e elogiador do trabalho de nossa conterrânea, que lamentou não ter podido aceitar o convite do ilustre escritor baiano para visitar a casa dele e da mulher Zélia Gattai em Salvador. Na época, Tita estava grávida e já com outros compromissos agendados na Europa, mas foi surpreendida com a visita do professor alemão que era amigo e tradutor da obra de Jorge Amado – Jorge Amado que nasceu em 1912 neste mês de agosto e faleceu em 2001, também em agosto, mesmo mês de nascimento de Tita. Jorge Amado morreu, mas, embora não tendo conhecido pessoalmente Tita, dela conheceu e se emocionou com sua arte. Tita fez um livro de arte com uma obra jorgeana chamada “Do Recente Milagre dos Pássaros”, à época inédita e cujo aproveitamento artístico foi autorizado por telefone pelo próprio Jorge Amado diretamente para Tita.
Politizada, consciente, senhora de si, Tita assume sua negritude. Na Europa e em outros continentes, nunca foi nem se sentiu discriminada. Talento não tem cor – ou, se tem, é a soma de todas as cores.
Por último, lembro que, antes de Tita, Caxias e a Alemanha já tinham tido alguns pontos de contato. O poeta Gonçalves Dias, que lia em alemão, tem diversos poemas com epígrafe que são versos e frases de autores alemães.
Também, há 202 anos, em 1817, estiveram em Caxias, onde passaram cerca de duas semanas, os notáveis cientistas alemães Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix. Chegaram a nossa cidade muito doentes, quase mortos – e tiveram suas vidas salvas porque aqui em Caxias, já naquela época, havia médico formado no Exterior e que atendia muito bem... e em inglês, idioma que os alemães conheciam. Spix e Martius, em sua famosa obra em três volumes “Viagem pelo Brasil”, souberam reconhecer a gentileza do atendimento e a grandeza de Caxias (na época, uma das maiores cidades do país).
A Alemanha é a pátria-mãe da palavra “chope” – isso mesmo, a bebida. Claro, no dicionário português, há outras palavras alemães, ditas germanismos, mas fiquemos com a mais líquida e certa delas.
Com a ida e permanência de Tita na Alemanha, a balança empatou – dependendo do ponto de vista de cada um. Spix e Martius vieram para cá quase mortos, e nós os tratamos e os devolvemos sãos e salvos para a pátria deles. A Alemanha recebeu Tita sadia em corpo e arte... e ficou com ela. Com seu chope, a Alemanha nos deixa bêbados e com menos dinheiro. Com as obras de Tita, os alemães se embriagam de Cultura e têm mais valorizadas as peças que compram.
Senhoras e Senhores, encerro por aqui. E o faço com duas frases entre as tantas que anotei no gostoso café em que me receberam Tita, sua irmã Ederis e sua mãe, Dona Francisca.
Cada um de nós aqui sabemos daquela história de a gente sair da cidade mas a cidade não sair da gente. Com os olhos tendentes ao marejamento pelas lágrimas, com os olhos próprios de quem olha e reolha a própria alma e a própria história, Tita confidencia: “Foi duro sair de Caxias; foi duro deixar meus pais”.
Mais adiante, a memória de Tita traz, à sua boca, as palavras de seu pai quando ela ainda era criança e dizia ao pai que queria ser artista. A resposta de Seu Antônio Rodrigues, o Alemão, foi chamar a filhinha caçula assim pra perto. Ele sabia que Tita já desenhava naquela idade. Mas, saudavelmente provocador e desafiador, disse à filha, como todo pai diria, intimamente orgulhoso:
“– Minha filha, só acredito que você quer ser artista se você desenhar uma casa por dentro e por fora”.
Tita compreendeu. Era a forma carinhosa de o pai lhe ensinar o que, em desenho, gravura e pintura, se chama perspectiva, aqueles traços que levam à representação das três dimensões e cria a ilusão de que uma figura plana tem realmente espessura e profundidade.
Sem esquecer os retalhos de tecidos da mãe nem os entalhes na madeira feitos pelo pai, onde, além de dimensões, havia cor, havia beleza, havia alegria, Tita foi além do desenho de uma casa.
Hoje, praticamente no mundo todo, as casas é que se orgulham de ter os desenhos de Tita.
Esta é Tita do Rêgo Silva, caxiense, maranhense, nordestina, brasileira, cidadã do mundo.
Esta é Tita do Rêgo Silva, autora e artista, que escreve livros com imagens e que também os desenha com palavras. Em sua Arte, primeiro vêm os sentimentos, a inspiração, a reflexão; depois, fazem-se os desenhos. Como sempre, o invisível sustenta o visível...
[...]”
* EDMILSON SANCHES
Fotos:
À mesa, Dª Francisca à cabeceira, com Tita e Sanches em primeiro plano, na residência em Caxias (MA). Sanches e Tita, que assina o livro de posse da Academia. Sanches e o muro/mural na casa de Dª Francisca. O ateliê de Tita do Rêgo Silva na Alemanha.