– A todos que usam a palavra
VOCÊ É (SUA) PALAVRA
Somos palavras.
Somos o que fazemos, mas também o que falamos. Pois no princípio era o Verbo, e o Verbo se fez carne (João 1, 1.14).
E a carne novamente se faz verbo – quando falamos, ou escrevemos.
Somos palavra e somos letras.
Desde o Gênesis, a gênese, a Genética.
Somos palavra em carne, encarnada: DNA – RNA – A G C T/U.
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No último sábado, 27 e janeiro, foi o Dia do Orador. Embora não se tenha localizado a origem desse dia, creio, até provas em contrário, que essa data se deve ao falecimento em 1960, no Rio de Janeiro (RJ), do grande brasileiro Osvaldo Aranha, nascido em Alegrete (RS), em 15 de fevereiro de 1884.
Oswaldo Euclides de Souza Aranha formou-se em Direito. Foi ministro da Fazenda, da Justiça e das Relações Exteriores. Foi embaixador do Brasil em Washington (Estados Unidos). Presidiu as duas primeiras assembleias da Organização das Nações Unidas (ONU), inclusive a que criou Israel, país que homenageia Oswaldo Aranha com seu nome em praça e em uma comunidade (“kibutz”). Oswaldo Aranha também foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz. O Brasil foi o primeiro país (hoje, são mais de 190) a aderir à ONU. Desde 1955, mas em reconhecimento ao papel de destaque de Oswaldo Aranha, o representante do Brasil, geralmente o presidente da República, é quem faz o primeiro discurso, na abertura da Assembleia Geral anual da ONU.
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O mestre, o discípulo, o pássaro... e uma dúvida
A TODOS QUE USAM A PALAVRA
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O jovem discípulo aprisionou um pequeno pássaro entre as mãos, colocou-se atrás do seu mestre e falou-lhe: “Mestre, tenho um pássaro nas mãos. O senhor, que sabe todas as respostas, diga-me: Ele está vivo ou morto?”
Se o mestre respondesse: “Está vivo”, o discípulo esmagaria o pássaro e o exibiria morto. Se a resposta fosse: “Está morto”, o discípulo libertaria o pássaro, que voaria frente ao mestre agora desmoralizado.
O que falar? O que dizer? O que responder?
Permitam-me que eu os cumprimente a todos aqui com a tradição, a simplicidade e a educação de duas palavras: Senhoras; Senhores.
O que podemos falar, e o que devemos dizer, em um discurso? Que palavras devemos usar, que sentidos devemos empregar, que emoções devemos expressar, que reações queremos provocar?
Ah!, esse novo jogo verbal, essa nova esfinge vocabular também nos observa e repete: “Decifrem-me, ou lhes devoro”.
Falar sobre o que falar é reabrir a discussão – tão antiga, tão presente – entre o ser e o ter. Reflitam comigo: Como escritores, queremos ter o poder da palavra ou queremos ser a palavra do poder?
O mundo ainda não acabou por causa da Arte, por causa dos artistas. Há artistas de todos os naipes: gente que musica e compõe, que esculpe e cinzela, que calcula e escreve, gente que pinta e borda. Gente, boas gentes. E há gente que fala, que canta e encanta, que clama e reclama, gente que declama.
Nisso tudo, a palavra. A palavra base, baldrame, bastião. A palavra resistência, permanência – e, disse Guimarães Rosa, “resistir é permanecer”. Senão, vejamos: O que valeu mais para Portugal: ter conquistado, com seus navegadores, algumas terras há muito tempo retomadas ou devolvidas, ou conquistar diária e eternamente o mundo inteiro com “Os Lusíadas” de Camões, com a poesia de Fernando Pessoa?
De que valeram os enormes, portentosos, mas ao final destroçados, derrotados tanques de guerra da Alemanha? Porém, as obras de seus pensadores e compositores permanecem inteiras e, elas sim, continuam conquistando todo mundo no mundo todo.
Na minha terra – que, por sua importância econômica e cultural, em meados do século XIX, dividia o território brasileiro em dois: Estado do Maranhão e Estado do Brasil –, na minha terra, havia gigantescas fábricas de tecidos, que teciam o nome e fama nacionais. Hoje, que é daquelas fábricas? Sumiram. De-sa-pa-re-ce-ram. Tornaram-se pó (ou tornaram ao pó), como prova da efemeridade, da transitoriedade, da impermanência a que estão submetidas, “ab initio”, as coisas materiais.
Mas é igualmente da terra das palmeiras, onde cantam os sábios e os sabiás, que vem a obra de Gonçalves Dias, Coelho Netto, Humberto de Campos, Ferreira Gullar, Josué Montello, sem esquecer um dos maiores -- e menos divulgados – gênios matemáticos que o mundo já teve: Gomes de Sousa, o jovem “Sousinha”, que também era médico, literato e poliglota, e que deixou perplexa a Europa com seus conhecimentos sobre tudo, mas, sobretudo, sobre Matemática, Física e Astronomia, antes de morrer com pouco mais de trinta anos.
Senhores: Da bíblica Jerusalém, da Grécia do século VIII não restou pedra sobre pedra, mas a palavra de Cristo e os versos de Homero estão aí, a encantar o mundo, a edificar o homem.
Que lição isso traz? A lição, tão bem dada e tão mal recebida ou mal aprendida, o exemplo tão bem demonstrado e muito pouco seguido, é a lição de que aquilo que nos parece ser mais frágil, mais débil, mais fraco, é o que resiste, é o que permanece. A palavra, passada oralmente, escrita em papel, às vezes moldada no barro ou emoldurada no ferro, a palavra é o edifício que não rui, a construção que não desaba, o prédio que não tomba, a casa que não cai.
No princípio, e depois do fim, será sempre o Verbo.
Senhores, estamos vivendo em um mundo de virtudes rarefeitas. Neste momento, empregados estão contrafeitos, clientes são desfeitos, cidadãos mostram-se insatisfeitos e patrões, administradores e governantes podem levar tiro nos peitos porque não estão sendo humildes e honestos no que tinham a falar, no que deviam dizer; porque, mesmo quando lhes é exigido serem duros no falar, não devem perder a ternura jamais. E comunicar também sugere isso. Afinal, ternura não é frescura, delicadeza não é patente de dama inglesa.
Não há como confundir, não há porque confundir educação com bajulação, boas maneiras com maneirismos. Servir não é ser vil, ou servil. Comunicação é ação única, ação comum, como um, como única ação.
E por que assuntos como este, discussões como esta, sobre palavra e virtudes, por que isso tudo parece ser tão incompreensível, inadmissível, tão “démodé”, às vezes tão estranho, hoje?
O que foi que aconteceu? Houve a banalização da fala? A vulgarização da palavra? A dessensibilização dos sentidos? A dessacralização dos sentimentos?
É o mau uso da Língua, a incorreção da linguagem, a palavra de duplo sentido ou a vida sem nem um significado?
É a precariedade ética, a prevenção cética, o primarismo estético, o pragmatismo técnico?
É a miopia política, a ausência de crítica, a repetição cíclica, a deseducação típica?
É a inafeição cultural, a inaptidão intelectual, a indisposição literal, a desinformação atual, a decomposição moral e coisa e tal, o que é, Senhoras e Senhores? É a falta da virtude rara, da vergonha na cara?
Desculpem-me – peço-lhes – se, em vez de um fraseado bonito e soluções confortantes, trago-lhes eu aqui um leriado, um palavreado feio e dúvidas cortantes, constantes. Mas até nisto há de se entrever algum mérito, porque o homem também cresce quando duvida.
Dúvidas, pois, à mão cheia... e deixa o povo pensar. Dúvidas, pois, à mão cheia, para todos vocês, fiéis e únicos depositários de suas próprias respostas.
Trago-lhes a dúvida não da palavra, mas a do que fazer com ela. A mesma dúvida que pensou gerar o jovem discípulo (lembram-se) ao aprisionar um pequeno pássaro entre as mãos e testar seu próprio mestre: “O pássaro está vivo ou está morto, mestre?”
“Filho – respondeu o mestre –, o futuro do pássaro está em tuas mãos. Como o queiras”,
Senhoras e Senhores, usei da palavra para conceder-lhes, para conceder-nos o benefício da dúvida. Pois a resposta, o futuro – vivo, alegre, de altos voos aos céus, ou morto, cinzento, ao rés do chão e no pó da terra –, esse futuro, e o que fazer da palavra, dependerá dos Senhores, dependerá de nós. U-ni-ca-men-te. Como assim o decidirmos.
Façam o jogo, senhoras e senhores.
A sorte novamente está lançada.
* EDMILSON SANCHES