Skip to content

40 anos da morte de Déo Silva*

“–  A BOLSA OU A VIDA?”

(Das lembranças de um poeta caxiense e seu poema)

                           O poeta Deo Silva

*

Exatamente hoje, 27 de setembro de 2023, o poeta caxiense Raymundo Nonato da Silva completa 40 anos de morte (ou encantamento, segundo a máxima de que escritores, em especial poetas, não morrem – encantam-se).

Em 27 de setembro de 1983, com apenas 46 anos, morreu Raymundo e para sempre ficou Déo. Déo Silva. Um dos mais representativos poetas da contemporânea literatura brasileira, maranhense, caxiense.

Rapazote, ainda na minoridade, eu era frequentador assíduo do “Recanto dos Poetas”, o famoso bar do Artur Cunha, ali na Praça Vespasiano Ramos, esquina com a Rua São Benedito, em frente ao largo da Igreja de mesmo nome, em Caxias. Naquele “agradavelmente anti-higiênico bar”, como uma vez o defini, em uma roda de amigos, reuniam-se muitos nomes da “intelligentsia” caxiense, como Déo Silva, Vítor Gonçalves Neto, Arias Marinho, Luís Gonzaga das Chagas Leitão e seu irmão João Leitão, Rodrigo Octavio Teixeira de Abreu (o Tavico), o próprio Artur Cunha (que assobiava e chupava cana, isto é, atendia a freguesia e participava do jogo de “impugna” e das conversas e altas discussões), Cid Teixeira de Abreu, e Edmilson Sanches, o único menor de idade em um grupo de homens que eram jovens há mais tempo – bem mais tempo – que eu.

Todos nos reuníamos em torno de uma mesa, alguns copos e diversos dicionários. Além de conversa fora, jogávamos a tal “impugna”, um jogo de palavras que consistia em ir acrescentando (“jogando”) letras a uma letra inicial jogada, sem deixar que se formassem palavras (não valiam monossílabos). No jogador em que terminasse a palavra, aquele levaria um ponto negativo – e poderia pagar a "rodada" de bebidas. Se alguém “apelasse” para uma palavra “difícil” ou inexistente, os diversos dicionários – possivelmente os mais úteis ou mais consultados de Caxias, de propriedade do Artur – estavam ali, sendo manuseados, mãos e dedos ágeis, sôfregos e perspicazes à cata do termo, do nome, do verbete.

(Exceto por gozação, era difícil apelar para palavras não formalmente existentes, sobretudo porque ali era um ambiente de "feras" das letras, jornalistas, escritores e leitores vorazes, diversos deles professores). O Artur Cunha cunhou uma expressão que se tornou axiomática: ser o jogador depois de Edmilson Sanches era "levar uma de quati”, querendo dizer que o jogador que fosse o próximo depois de mim pegaria um “osso” (numa referência ao ossinho, chamado báculo, no genital do bichinho). Isso porque eu jogava “duro”, frequentemente colocando uma letra que deixava o próximo jogador sem opção, a não ser encerrar a jogada, seja porque a palavra forçosamente terminaria nele, seja porque, por ser “difícil”, não havia como continuar a palavra.

Com efeito, na adolescência eu era cultor de livros, inclusive dicionários, e memorizara alguma coisa, além do recurso de decorar sem esforço os morfemas e afixos, elementos de formação de palavras (prefixos, infixos, sufixos etc.), o que funcionava como recurso dentro das “estratégias” do jogo.

Foi nesse ambiente nublado de cigarros, fluido de álcool e letras em suspensão que conheci Déo Silva. O bigode, o cigarro, o corpo descansando folgada e naturalmente, derreado numa cadeira.

Afora os da geração dele, que conheceram a pessoa, não são muitos os que conhecem o poeta, o escritor, que viveu meros 46 anos e deixou uma obra para séculos, marcante, consistente – embora não a ponto de sensibilizar, de despertar o interesse de muitas mentes dos dias de hoje e dos muitos anos dos ontens, e, parece, infelizmente, dos muitos amanhãs que hão de vir.

Da vida de Déo Silva sei de seus livros “Ângulo Noturno”, de 1959, e o famoso “Equação do Verbo”, de 1980, além de, pelo menos, uns oito inéditos, segundo lista feita pelo poeta Wybson Carvalho, integrante e ex-presidente da Academia Caxiense de Letras.

Por enquanto, de memória, sem consultar ou conferir livros e amigos, falo do episódio que teria sido a gênese de um dos seus mais belos poemas (igualmente transcrito aqui de memória, sem saber as exatas palavras e sua disposição na arquitetura poemática. Prometo redimir-me tão logo esteja com o original em mão*).

Todo poema tem sua história, ou dá uma. Pois bem. Conta-se que estava Déo Silva em São Luís. Situação difícil. Liso. Sem dinheiro. Já o último cigarro prensado aos lábios. Precisava ir para a rodoviária. "Arriscar" uma passagem com eventual passageiro conhecido que por lá também estivesse.

A rodoviária, do ponto em que Déo estava, era longe. A pé. Muito longe. Chuva. A pé. Muita chuva. Começa a cair a noite. Então aparece do nada o bandido, mal amado e bem armado.

Do encontro do ladrão e do poeta surge o poema:

Na rua,

a escuridão.

Eu

e um ladrão.

“– A bolsa ou a vida”.

Ambas vazias.

*

(*) Em 2020, tive boas conversas com o advogado, ex-deputado federal (por São Paulo) e escritor caxiense Frederico Brandão, residente em São Luís e meu confrade na Academia Caxiense de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico de Caxias. Frederico, além de primo do poeta Déo Silva, foi seu colega de escola nos bons e velhos tempos de ambos estudantes em nossa cidade natal. Nas conversas, logrei recuperar o exato teor do famoso poema do Déo, que nunca foi publicado (atesta Frederico) e que sobrevive pela força de sua expressividade ao mesmo tempo concisa e eloquente e pela continuada repetição, o boca a boca que migrou dos bares e ruas boêmios para a consciência de parte da coletividade caxiense. Foi assim, na oralidade, que grandes textos se (im)puseram no mundo, até serem pegos no laço pelas mãos aptas, destras, de escribas, escreventes e escritores – estão aí a Bíblia e outros livros sagrados, estão aí diversas histórias da literatura de cordel, entre outros, que não me deixam mentir...

A segurança de Frederico Brandão e sua afinidade pessoal e parental com Déo Silva, além de sua memória (posto que grande memorialista ele é) garantem que o texto que se transcreve a seguir é o definitivo e o que o poeta caxiense compusera.

Contei esse resgate da letra original do poema deo-silviano em prefácio que escrevi para o livro “Há Pedras e Poesia em Meu Habitat”, de Wybson Carvalho, lançado em agosto deste 2021. Este é o poema original (para outras considerações sobre o assunto, inclusive as demais versões do poema, consulte-se o referido prefácio na obra wybsoniana):

 Na rua escura, eu e um ladrão.

“A bolsa ou a  vida”. 

Consultei-as.

Ambas estavam vazias.

*

Ainda o poema

Esse poema, que Wybson intitula “Noite ludovicense”, sempre me lembra do título A Bolsa & A Vida, de Carlos Drummond de Andrade, lançado em 1962. Em setembro de 2020, mantive longas conversas ao telefone e troca de mensagens com o advogado, ex-deputado federal, escritor e acadêmico caxiense Frederico José Ribeiro Brandão, amigo, colega de estudos, parceiro de boêmia e primo de Déo Silva. Atestou-me por escrito ter ouvido inúmeras vezes Déo declamar o poema, a ponto de as exatas palavras lhe terem ficado indeléveis na memória conterrânea. Registre-se, aqui, então, à guisa de tributo iniciado por Wybson, a versão que escrevi (antes do contato com Frederico) e a reprodução textual dos versos deo-silvianos, conforme me disse e escreveu o confrade Frederico, confiável testemunha ocular e auricular, que assim relembra Déo: “Era uma pessoa alegre, comunicativa. Em São Luís, juntou-se a um grupo de intelectuais e boêmios. Não mais saiu dessa ambiência que nem o casamento mudaria. O casamento foi encerrado. Perdeu o emprego”. Quanto ao poema: “Ouvi dele próprio! E, a meu pedido, outras vezes. Estou certo de que Déo não deixou isso em qualquer escrito seu. Déo foi meu colega de turma no Ginásio Caxiense. Meu primo, também. // Não guardo dúvidas sobre o que ouvi. Como também sei que Déo ‘recitava’ esse quase verso para muitos. E,  como não o escreveu, os que ouviram...”

Agora, sobre os famosos versos.

NOITE  LUDOVICENSE

(versão de Wybson Carvalho)

“São Luís, um beco escuro, um ladrão e eu...

ele – mãos ao alto; a bolsa ou a vida!

eu – consulte-as; ambas estão vazias!”

*

“A BOLSA OU A VIDA”

(versão de Edmilson Sanches, baseada em lembranças do que ouvia no bar “Recanto dos Poetas”, em Caxias):

Na rua,

a escuridão.

Eu

e um ladrão.

“– A bolsa ou a vida!”

Ambas vazias.

*

Transcrição de Frederico Brandão, que reitera que os versos, sem título, nunca foram publicados. A partição em linhas (versos) foi por minha conta, observada a pontuação original:

Na rua escura, eu e um ladrão.

“A bolsa ou a  vida”. 

Consultei-as.

Ambas estavam vazias.

Reconheça-se, pois, nos versos acima, a árvore Déo Silva, firmemente enraizada, e, nas duas reescritas antecedentes, as folhas deixadas cair, sazonais, e que Wybson e eu ousamos recolher e conservar... Como se vê e lê, pelo dedo se conhece o gigante ()... e Déo Silva, lembrando verso de Horácio, executou, com as declamações de seu poema, “um monumento mais duradouro que o bronze” ().

--------

(*) “Pelo dedo se conhece o gigante”: expressão latina – “Ex digito gigas”.  “Um monumento mais duradouro que o bronze”: “Exegi monumentum aere perennius”, “Executei um monumento mais duradouro que o bronze”, verso que, no dizer de Paulo Rónai, em seu livro “Não Perca o Seu Latim”, refletia o “justo orgulho” do poeta Horácio ao publicar os três primeiros livros das suas Odes, em 23 a. C. (o quarto sairia dez anos depois, em 13 a. C.; nesse intermédio se publicariam, entre outras obras horacianas, a “Arte Poética ou Epístola aos Pisões”).

* EDMILSON SANCHES