
A GENTE FAZ LEITURA, A LEITURA FAZ A GENTE
– O papel transformador das bibliotecas e dos papéis com letras (livros, revistas, jornais... e até bula de remédios)
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Hoje, 7 de fevereiro, é o dia em que, em 1835 – portanto, há 190 anos –, em Salvador (BA), era fundada a primeira livraria do Nordeste do Brasil – a Livraria Catilina, que também imprimia livros e teve entre seus autores, por exemplo, os escritores Rui Barbosa, baiano, e o maranhense Coelho Netto, filho de minha cidade (Caxias).
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Quando eu estudava o ensino fundamental, não via a hora de chegar em casa e, após o almoço, ir para a Biblioteca Pública Municipal de Caxias, ali na Rua Aarão Reis, no centro da cidade (do outro lado, os muros da quadra de esportes do Cassino Caxiense, um clube social da elite da cidade, que hoje é nada – o prédio do Clube e a pompa da elite...). O responsável pela biblioteca era o Inocêncio Gomes, um moreno empertigado, sempre perfumado e bem vestido, fala mais ou menos empostada. Atencioso, discreto, prestativo.
Creio que quase todo dia eu estava lá; às vezes lia na parte de baixo, entre as estantes, às vezes subia para o pavimento acima, onde havia diversos quadros (pinturas) na parede. Se ainda existirem os velhos livros de registro de frequência, deve haver neles muitas assinaturas minhas.
Eu lia de tudo. Livros como "Os Irmãos Corsos" e outros de Alexandre Dumas, os de Monteiro Lobato, as enciclopédias "Delta Júnior" (capa avermelhada, edição de 1972) e as duas "Delta Larousse", da década de 1960, uma de capa marrom, com conteúdo por assunto, e a de capa cinzento-esverdeada, em ordem alfabética. Só tempos depois vim a conhecer a "Delta-Larousse Universal", a "Larousse Cultural", a "Barsa" e a "Mirador Internacional", que ainda (man)tenho em meu acervo.
Quando em 1975 saiu a primeira edição do "Dicionário Aurélio", o chamado “Aurélio de fardão” (pois vinha com capa acolchoada, luxuosa), comprei um exemplar em prestações e praticamente li o livrão todo, anotando uma razoável quantidade de erros e inconformidades, além de listar um bom número de achegas, que são palavras de uso comum não dicionarizadas. Fiz uma carta para o professor Aurélio Buarque encaminhando as contribuições. Não sei se não a enviei ou se não mereci resposta do velho lexicógrafo alagoano… (Conservo até hoje aquele pesado exemplar do "Aurélio", bem como cópia da carta original endereçada ao mestre das Alagoas – que, na verdade, para a realização de seu trabalho, contou com a insuperável contribuição do maranhense Joaquim Campelo Marques).

Lembro-me da biblioteca do Colégio São José, no final (ou no começo) do segundo pavimento, naqueles idos de 1975 a 1977, três anos em que fui presidente do Grêmio Santa Joana d’Arc, até porque o Roldão, que ganhara a eleição de 1975 (eu ficara em segundo lugar; era anual o mandato) renunciou semanas depois e eu assumi a presidência. Com o apoio da diretora, Irmã Clemens (ou Maria Gemma de Jesus Carvalho, confrade da Academia Caxiense de Letras), criei o "Gremural - Jornal Mural do Grêmio” e o "Jorgrem - Jornal do Grêmio”, que eu fazia após as aulas, à tarde, entrando madrugada a dentro, pois tinha de redigir e, depois, datilografar com cuidado os estênciles em máquinas de escrever, com compridos carros (aquela parte que corria horizontalmente, onde se punha o papel ou o estêncil). Depois, o jornal era rodado, impresso, e distribuído para o alunado. Guardo exemplares desses jornaizinhos.
Lembro-me, ainda, da pequena biblioteca do Serviço Social do Comércio, o SESC, onde eu, na condição de menor estagiário do Banco do Brasil, fora especialmente admitido, até porque eu criei e redigia o jornalzinho da casa "NÓS - Notícias Organizadas do SESC", de que tenho alguns exemplares ainda. Recordo-me de alguns servidores do SESC: a Consolação (Consola); o lutador Elias, segurança, negrão forte e boa praça — o fotógrafo Sinesinho (Sinésio Santos, o filho) e eu fomos dois dos diversos alunos do grande Elias, que nos treinava em artes marciais ali na quadra do Serviço. A sede do SESC se mantém até hoje na Praça Cândido Mendes, bem atrás da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição e São José, no centro caxiense.
Lembro-me da biblioteca do Vítor Gonçalves Neto, na verdade livros amontoados e espalhados na redação do jornal "O Pioneiro", ali na praça dos Três Corações. Muito de referências da literatura maranhense, brasileira e universal obtive ali, na década de 1970, folheando dezenas de livros, muitos deles com dedicatória de seus autores ao jornalista e escritor Vítor, o mais caxiense dos piauienses.
Eu lia de tudo, dentro e fora de bibliotecas públicas e particulares. Não eram só leituras de livros escolares ou paradidáticos. Lia bula de remédios, os chamados "bolsilivros" ou livrinhos de bolso "pulp" (isto é, feitos de papel barato) do Marcial Lafuente Estefânia, Miguel Chucho Santillana, Ell Sov (pseudônimo do luso-brasileiro Hélio do Soveral), Clark Carrado, Corin Tellado, Horace Young Kirkpatrick, K. O. Durban (o homem, um espião da CIA, vivia com seis mulheres numa ilha, às quais era reservado um dia da semana para cada; descansava aos domingos), livros da Brigitte Montfort e sua mãe, Giselle, “a espiã nua que abalou Paris”, retratadas nas capas com mestria pelo desenhista Benício, nome artístico do gaúcho José Luiz Benício da Fonseca, que foi pianista e que, como ilustrador das capas daqueles livrinhos, não economizava em forma, beleza, sensualidade e que tais.
Autores e personagens que se fundem e davam vida a livros e livrinhos...

A Editora Monterrey, do Rio de Janeiro (RJ), que publicava diversos desses livrinhos e coleções (tinha uma concorrente forte, a Editorial Bruguera), instituiu um concurso, chamado "Homenagem à Inteligência do Leitor". Era simples: para cada erro de Português ou outro lapso de revisão o leitor que o apontasse ganharia um livro de bolso. Não demorou muito para os Correios estarem entregando periodicamente volumosos pacotes em meu endereço, lá na Rua Antônio Pereira Neto (a Nova Rua), em Caxias.
Danado, tive acesso a uma vizinha, que me emprestava os livrinhos de bolso da coleção "Olho Mágico", de literatura erótica, série pioneira que se lançava no país.
Curioso, não deixei passar sem ver ou ler os livros de "São Cipriano", seja o capa preta ou o capa vermelha, os "Quinhentos Pontos Cantados e Riscados em Umbanda e Candomblé". Verdadeira traça de celulose e tinta impressa, ia traçando revistas de fotonovelas do tipo "Grande Hotel", "Sétimo Céu", "Sétimo Céu - Série Amor", "Contigo", "Capricho", "Ilusão", "Jacques Douglas", "Lucky Martin" e sai da frente e de baixo.
Só escapava o que não estivesse ao alcance do meu radar (ou faro) para papel com letras impressas. Claro que não faltavam as revistas de histórias em quadrinhos, de editoras como Abril, Rio Gráfica e EBAL (Editora Brasil-América Ltda., de Adolfo Aizen e Naumin Aizen) etc.
Do "Pato Donald" ao "Super-Homem", do "A" do "Akim" ao "Z" do "Zorro", não escapava ninguém, nenhum título. Afora os itens de coleções (alguns deles até hoje guardados), os demais eram levados para trocar em tardes de exibição de filmes, na porta do Cine Rex e, principalmente, na do Cine São Luís, ali perto do Excelsior Hotel, na Rua Dr. Berredo, no centro de Caxias.
Muitos desses livros e revistas ou não se vêem ou desapareceram, embora se encontrem à disposição em sebos e preservados carinhosamente por colecionadores.
O tempo passa… o tempo voa, e a gente vai mudando de canoa.
Mudam-se, aperfeiçoam-se (!) os gostos (livros e publicações periódicas), mas não se muda o hábito (leitura).

Embora o enorme avanço da Internet e sua infinita capacidade de documentação e arquivo de textos, imagens e sons, nada assegura que estejam em seus dias finais a revista e o livro físico, de papel, com cheiro de novo ou de mofo.
Ao contrário, estão-se lançando mais e mais títulos, aperfeiçoando os métodos e suportes de impressão, com papéis especiais e muitos triquetriques nas capas.
Vida longa ao livro, à revista, aos jornais e, claro, aos leitores... e às livrarias.
* EDMILSON SANCHES
Fotos:
1) Edmilson Sanches criança. 2) Fazendo palestra no Senado Federal (Brasília - DF). 3) No Quartier Latin (Paris, França). 4) Fazendo palestra em Salão de Livro. 3) Prédio da Livraria Catilina, em Salvador (BA), e o livro “Versas”, do caxiense Coelho Netto, edição da Catilina, exemplar autografado para o escritor, jornalista e dramaturgo maranhense Antônio dos Reis Carvalho (1874-1946).