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LITERATURA MARANHENSE: A morte do jornalista e escritor José Erasmo Dias*

Uma pausa nas notícias diárias para apreciar um pouco da literatura maranhense. Aqui, apresento a vocês uma boa história sobre a morte do jornalista José Erasmo Dias, contada pelo amigo Fernando Braga. Aproveite a leitura!

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Era de manhã em São Luís e chovia... Deu-me a sorte de encontrar o meu querido amigo Murilo Ferreira à porta do “Atenas Bar”, egresso de casa onde passara à noite em claro a rascunhar alguns capítulos do seu livro “O pusilânime”. Depois dos cumprimentos iniciais, clareou-me uma ideia kafkiana: “Murilo, vamos fazer alguma coisa para intensificar mais São Luís àqueles ares europeus do início do século XIX, como nos conta o professor Nascimento Moraes no seu livro ‘Vencidos e degenerados’?” “Vamos”, disse-me ele sorrindo, a perguntar-me: “o quê, por exemplo?” “A morte de Erasmo”, disse-lhe, “ele já morreu umas dez vezes, mesmo!...” Ele respondeu-me sem titubear: “Vamos! Pelo menos se faz alguma coisa para sacudir as velhas muralhas desta nossa São Luís, hoje mais pachorrenta que nunca”.

E a notícia, corporificada à boca miúda, transpôs, de logo, os gradis do continente e correu... Chegou até Sarney que, como governador, suspendeu, no Palácio dos Leões, um almoço com cinco almirantes...

Antes de ser, vale como “post scriptum”: José Erasmo Dias, era jornalista, escritor, uma eminência parda [“éminence grise”] de vários governos, que depois desta, uma das suas muitas mortes, esbarrou na pena brilhante do jornalista e poeta José Chagas, que nos conta como foi essa história:

José Chagas**: “A morte de Erasmo”, in: ‘Jornal do Dia’, São Luís, 5 de maio de 1969.

A morte do jornalista Erasmo Dias, anteontem, constituiu o mais psicodélico dos acontecimentos nos últimos dias, em São Luís. A notícia espalhou-se pela cidade e, entre dúvidas e certezas, muitos de seus amigos viveram momentos de angústia, alguns procurando afogar essa angústia no “Atenas Bar”, o que era, ao mesmo tempo, um consolo e uma homenagem ao recém-desaparecido.

Murilo Ferreira vira quando o Erasmo, alta madrugada, depois de um colapso em plena rua, fora levado para o Centro Médico. E, como testemunha de vista, afirmava que o Erasmo já chegara ali morto, afirmação essa que, no bar, contrariava a opinião de outros que teimavam em dizer que o jornalista só falecera momentos depois de chegar ao Centro Médico.

O poeta Fernando Braga contava detalhadamente como o corpo do já prateado jornalista fora levado para a residência nos Apicuns e falava da dificuldade imensa que tiveram para encontrar, dentro da casa, o terno preto com que vestissem o morto, de modo que ele se apresentasse dignamente, em sua postura cadavérica.

Enquanto isso, o Murilo, entre prantos e cervejas, ia explicando aos que entravam no bar outro grande problema surgido com a morte do Erasmo. Era que seu corpo estava sendo disputado pela Assembleia Legislativa, pela Academia de Letras e pela Prefeitura de São Luis. A Assembleia argumentava que o jornalista havia sido deputado, era funcionário daquela casa e, portanto, o Legislativo tinha direito sobre o seu cadáver. A Academia de Letras, considerando que Erasmo havia sido um dos mais inteligentes escritores e uma figura das mais evidentes em nossos meios literários, queria que o corpo fosse levado para lá, tentando, talvez, academizá-lo postumamente, o que muitos achavam ser uma traição ao jornalista. Já o Cafeteira alegava que Erasmo fora prefeito em certa época e, por isso, desejava que o corpo fosse levado para o recinto da Câmara Municipal.

Houve quem, também, dissesse ali no bar que as últimas palavras de Erasmo foram: “Água! Água!” Mas ninguém acreditou. Não era possível que, na hora respeitável da morte, o Erasmo fosse faltar com sua coerência tão bem demonstrada em vida.

E o poeta Fernando Braga lembrava outro detalhe: “O Erasmo sempre me dizia que, no dia de sua morte, só queria de mim isto: ‘que eu colocasse quinze rosas em seu túmulo e bebesse uma cachaça no ‘Bar da Saudade”’. O poeta já havia comprado as rosas e mais algumas margaridas. Queria um enterro “hippy”.

Amigos e mais amigos chegavam e ficavam consternados. Se alguns duvidavam, Murilo mandava ouvir o rádio, através do qual o locutor Fernando Sousa dizia: “Estamos sabendo que o jornalista Erasmo Dias acaba de falecer. Notícia não confirmada, mas, enquanto isso, é com grande pesar que comunicamos o doloroso fato”: Era o que o presidente Michel chamou depois de “morte condicionada”. Muitas pessoas tomaram automóveis e foram até a casa do jornalista morto, certas de que o rádio estava dizendo a verdade.

E eis que, de repente, o Erasmo, de paletó e gravata, entra no bar, exclamando: “Essa, não! Nunca morrer assim, num dia assim, de grogue assim...” Sentou-se e pediu uma cachaça, sob a admiração de muitos que o viam como um ressuscitado. E duas coisas dolorosas foram então lembradas: a frustração do jornalista Paulo Moraes, que já estava com o discurso pronto para a beira do túmulo, e a raiva do jornalista Amaral Raposo, que entrou no bar e disse, danado da vida: “Peguei um automóvel, gastei dois mil cruzeiros para ir à casa do Erasmo e esse idiota nem morreu nem nada. Nunca mais vou cair no conto da morte dele!”

A essa altura, Erasmo sorria feliz, pedia outra dose e dizia ao dono do bar: “Defunto não paga grogue”, sem saber que o dono do bar tinha vivido momentos aflitivos, chorando com um vale preso na mão e a que o Murilo Ferreira chamara de “verdadeiro vale de lágrimas”.

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* Jornalista, contista, animador cultural e político.
* *Jornalista e escritor, é autor imortal de “Os telhados”, “Os canhões do silêncio”, “Colégio dos ventos” e outras grandes publicações.