Uma vida curta não é, necessariamente, uma vida pequena. A grandeza de uma existência não é expressa pela quantidade de dias decorridos entre a certidão de nascimento e o atestado de óbito.
Grandeza tem a ver com qualidade, intensidade. Dedicação. Grandiosidade.
No dia 1º de julho de 2020, completaram-se 100 anos de nascimento do poeta, declamador, jornalista e radialista Rogaciano Bezerra Leite.
Do município de São José do Egito, mais exatamente no Sitio Cacimba Nova, Povoado Umburanas, hoje território de Itapetim, em Pernambuco, onde nasceu em 1920, numa quinta-feira, até o Rio de Janeiro (RJ), em uma terça-feira, 7 de outubro de 1969, quando o coração do homem não aguentou a intensidade do artista, Rogaciano Leite caminhou caminhos nunca dantes caminhados pela maioria de seus conterrâneos nordestinos. Nesse itinerário de vida e ofício, Rogaciano, jornalista, escreveu reportagens premiadas; poeta, escreveu versos declamados; compositor, escreveu canções gravadas; declamador, recitou e interpretou poemas aplaudidos.
Os caminhos que Rogaciano caminhou levaram-no, no Brasil, de Norte a Sul do país, sendo destacado e distinguido tanto em Manaus, capital do Amazonas, referência da maior floresta tropical do mundo, quanto em Santos, em São Paulo, referência do maior porto da América Latina.
Os caminhos que Rogaciano caminhou, os ares por onde voou e os mares que atravessou levaram-no a países da Europa (Portugal, França e Espanha), de onde tirou fotos, informações e inspiração para escrever reportagens e outros textos.
O filho dos agricultores Manoel Francisco Bezerra e Dª Maria Rita Serqueira Leite, o marido da aracatiense Maria José Ramos Cavalcante, o pai de Rogaciano Leite Filho, Anita Garibaldi, Roberto Lincoln, Helena Roraima, Rosana Cristina e Ricardo Wagner, era um peripatético, andarilho, “globe-trotter”, em igual tempo sertanejo e cosmopolita, andando e ensinando, escrevendo e emocionando. Um homem homenageado. Conhecido e reconhecido.
Talento tão singular quanto plural – a ponto de ser Rogaciano um incomum caso de estudante a ingressar em uma Faculdade (de Filosofia do Ceará, em Fortaleza) para um curso superior (Letras Clássicas) apresentando uma obra sua (“Acorda, Castro Alves!”) e fazendo a prova vestibular de Latim em versos... mas versos alexandrinos, de 12 sílabas e outros que tais, e ainda evocando Cícero e Ovídio, consagrados escritores e poetas clássicos romanos dos séculos I e II antes de Cristo. Mereceu nota dez. Além disso, com sua atividade de jornalista e poeta o levando para muito além da capital cearense, onde estava a Faculdade, Rogaciano foi liberado da presença nas aulas e só comparecia nos dias de prova. Formou-se – tendo sido “o primeiro Cantador a alcançar um grau tão elevado”, como atestam os igualmente cantadores Francisco Linhares e Otacílio Batista, em sua “Antologia Ilustrada dos Cantadores”, obra publicada em 1976, com segunda edição em 1982.
Talento destacado também por seus pares. Foi amigo do poeta Manuel Bandeira, pernambucano que nem ele. O romancista baiano Jorge Amado que escreveu e o elogiou pelo poema a Castro Alves. Câmara Cascudo, o notável antropólogo, advogado, historiador e jornalista potiguar, fez a apresentação da principal obra rogacianiana, “Carne e Alma”, publicada por Irmãos Pongetti Editores, do Rio de Janeiro, em 1950. Na música, “monstros sagrados” da MPB clássica como Francisco Petrônio, Nélson Gonçalves e Sílvio Caldas, entre outros, gravaram composições de Rogaciano. Foi ele quem destravou as portas do tradicional e à época elitizado Theatro José de Alencar, na capital cearense, para os cantadores, os repentistas, os cordelistas, os agentes, fazedores e admiradores da rica cultura popular nordestina. Como jornalista, Rogaciano ganhou, em diversas categorias, nada menos que dois prêmios Esso de Jornalismo, além de uma menção honrosa. Não é pouco...
Em 1947, Rogaciano Leite veio ao Maranhão – esteve em São Luís e em Caxias. Intelectual, poeta e declamador, apresentou-se, por obra e graça dos amigos ludovicenses, no Teatro Artur Azevedo. Desse tempo, sobrevivem memórias em seus colegas escritores que o conheceram naqueles idos, entre os quais o advogado, ex-deputado e acadêmico Sálvio Dino e o advogado, poeta e crítico literário Fernando Braga.
Em Caxias, Rogaciano apresentou-se em noite concorrida no Cine Rex. Lembranças dessa apresentação ainda se mantêm presentes, por exemplo, em Arthur Almada Lima Filho, desembargador, escritor, acadêmico, e Frederico José Ribeiro Brandão, advogado, escritor, ex-deputado federal por São Paulo, que participaram do evento – ambos caxienses e meus confrades no Instituto Histórico e Geográfico de Caxias e na Academia Caxiense de Letras.
Conheci dois dos filhos de Rogaciano Leite: o Roga Filho, como alguns o chamavam, também jornalista e escritor, conheci-o em Fortaleza e até o homenageei em um poema, “Estoril”, sobre um bar e restaurante dos intelectuais e boêmios da noite fortalezense; e Helena Roraima Iracema Cavalcante Leite, engenheira civil, com estudos superiores em Economia Política e Social pela pela Universidade Complutense de Madrid, conheci-a em Brasília (DF). Rogaciano Filho faleceu em 5 de março de 1992, em São Paulo (SP). Helena Roraima, que mora há anos na capital da Espanha, conheci-a na Capital Federal, onde por anos foi minha colega, na assessoria da presidência da maior instituição financeira federal de desenvolvimento regional da América Latina.
É Helena Roraima que, com as limitações ditadas pela atual pandemia mundial, desenvolve, com competência e carinho, um esforço enorme para juntar os ecos, repercussões e ressonâncias de e sobre seu pai, documentados em matérias de jornais, fotografias de amigos, depoimentos de admiradores, enfim, tudo o que, espalhado na materialidade dos documentos físicos ou na digitalidade do universo virtual, possa (re)constituir um pouco dos muitos passos dados por Rogaciano Leite Brasil adentro e mundo afora.
Procurado por Helena Roraima décadas depois de nossas atividades em Brasília, juntei-me aos esforços da filha e, também, saí em busca de informações e pessoas que pudessem enriquecer e ampliar, ainda mais, o acervo que está sendo montado, para exposição em futuro evento pós-pandemia – o que também o farão as prefeituras de São José do Egito e de Itapetim, que já haviam elaborado grande – e adiada “sine die” – programação em homenagem ao ilustre filho pernambucano.
Por enquanto, um dos principais suportes de documentação e divulgação do acervo rogacianiano está no endereço eletrônico https://www.facebook.com/centenariorogaciano.leite.1 . Este “link” leva a uma página da rede social Facebook, criada e administrada por Helena Roraima. Nesse espaço, estão desde versos escritos até áudios, imagens, depoimentos etc. da breve vida e vasto mundo do poeta Rogaciano Leite.
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Não seria pedir muito que o centenário de Rogaciano Leite fosse comemorado com ele aqui presente, em carne, osso, alma e talento. Já não se estranha o completar-se um século de vida – até porque a Ciência anda aí anunciando que o homem bicentenário já está entre nós, ou seja, corre-se o saudável risco de um bebê que nasceu por estes dias ter festa de aniversário vivinho da silva em 2220.
Assim, especialmente hoje, morrer aos 49 anos parece uma afronta, uma indignidade ao ser humano, única criatura feita à imagem e semelhança do Criador... Dá para imaginar o quanto de potencialidades ainda flamejavam no íntimo mental de Rogaciano Leite. Mas, segundo os velhos latinos, “aquele a quem os deuses estimam, morre jovem” – ou, no idioma do antigo Lácio, que tão bem Rogaciano dominava: “Quem dil diligunt, adolescens moritur”. É frase de Titus Maccius Plautus, o dramaturgo romano Plauto, que viveu ali entre o segundo e o terceiro séculos antes de Cristo e que se teria abeberado em obra do grego Ménandros, o autor original da oração.
A valer essa máxima greco-latina, pode-se dizer que os deuses têm lá seus momentos de bom gosto: já cansados de bobos, truões e bufões em sua corte divina, nada como os deuses “pescarem”, no grande oceano da vida humana, alguém muito bom, que os pudesse deleitar com récitas ou recitais, canções e composições e, ainda, de quebra, pudesse escrever-lhes os perfis e seu cotidiano eterno.
Talvez Rogaciano Leite, sabendo dessa sentença, tenha imprimido um ritmo tão intenso na arte de escrever, fazer e viver em sua vida de 49 anos, 3 meses e 1 semana. Foram pouco mais de 49 anos que bem parecem cem.
Pois ele sabia: os bons, quando os deuses querem, correm o risco de partirem mais cedo...
Viva Rogaciano.
* EDMILSON SANCHES