Na Quinta do Val-de-lobos, na Póvoa de Santarém, em Portugal, vivia arredio Alexandre Herculano por questões de intrigas e pirraças com alguns dos seus companheiros da Torre do Tombo. Nos Apicuns, na antiga Quinta dos Frias, que prefiro chamar de Val-de-gatos, em São Luís do Maranhão, vivia acuado, junto de “krupskaia”, sua gata de estimação, José Erasmo Dias, a figura mais extraordinária que conheci na comédia humana, nesse todo de que nos recorda Balzac, apesar de sua figura representar, irremediavelmente, um protagonista das histórias de Dostoievski e das de Edgard Allan Poe, como se ele mesmo fosse “O Corvo”, ou mais alguém envolvido nos mistérios de “Crime e Castigo” ou naqueles contos tétricos da “Rua Morgue”. Era, ao mesmo tempo, este Erasmo autor e personagem. Tinha muito também do seu “alter ego”, o de Roterdã, como se fosse uma sombra que monologava no “Elogio da Loucura” contra deuses e demônios. Nasceu José, este Erasmo, em São Luís, no dia 2 de junho de 1916, e parido no ventre da geração de 30 do Maranhão. E se fez jornalista, contista, polígrafo e panfletário, abandonando o curso de Direito no terceiro ano; exercia influência literária, por ser um homem de cultura feita, e orientava aos que lhe solicitavam ajuda artística.
É este o olhar que tenho e recordo de José Erasmo Dias, a ratificar, sem mudar uma vírgula, o que escreveu Graça Aranha, em “O Meu Próprio Romance”, sobre a figura de Tobias Barreto, quando o conheceu na Congregação da Faculdade de Direito do Recife: “O mulato feio, desgracioso, transformava-se na arguição e nos debates; os seus olhos flamejavam; da sua boca escancarada, roxa, móvel, saía uma voz maravilhosa, de múltiplos timbres, a sua gesticulação transbordante, porém sempre expressiva e completando o pensamento. O que ele dizia era novo, profundo, sugestivo”.
Erasmo Dias foi um homem honesto e honrado; viveu e sofreu numa pobreza franciscana. Foi diretor do Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado, deputado estadual e prefeito interino de São Luís. Era aposentado pela Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão, no cargo de diretor de Debates.
A grandeza de Erasmo, como político, como homem de cultura e, sobretudo, como uma figura marcante e marcada que lhe emolduraram a personalidade, quer emblemática, ou estigmatizada, ficou em todos nós ao longo de uma sofrida vida que ele fingia alegre, mas que, no íntimo, interpretou-a e se autodirigiu, inegavelmente sem nenhum retoque, mas com a legitimação, por exemplo, estampada no seu à Pirandello, “O Roubo dos Personagens”, que, em síntese, é ele, por ele mesmo.
Sobre essa figura singular, atentemos para o que escreveu a pena abalizada de Lago Burnett: “Erasmo Dias era contagiante. Intimava, empolgava, comprometia. Era difícil ouvi-lo sem um arrebatamento. Suas atividades convergiam para um só mecanismo propulsor e detonador de eventos. Erasmo, o escritor engajado, o polemista, era o elemento catalisador que impulsionava toda uma geração e fazia crescer o fermento do seu entusiasmo pelos grandes temas contemporâneos. Jornalista, foi no panfleto, na folha vibrante e desaforada dos grandes duelos políticos, que encontrou as melhores oportunidades para realizar-se, dizendo, com bravura e malícia, o que a patuleia perplexa mal conseguia traduzir em sentimentos, quanto mais em palavras”.
Nessa esteira de análise, Carlos Cunha, no seu livro de memórias “Caçador da Estrela Verde”, disse sentimentalmente: “Não era do hábito de Erasmo Dias sentar-se à mesa para ensinar os iniciantes da arte. A conversa, com ele, ajudava-nos a aprender as coisas, ver uma luz no fundo do túnel. [...] Como político, alçou voo alto, tão brilhante quanto o intelectual e boêmio. Na tribuna da Assembleia Legislativa, Erasmo Dias fazia discursos brilhantes e eloquentes, arrebatando aplausos, fazendo as galerias delirarem. Com o seu dom para a ironia, conseguia, com rara sensibilidade, levar os interlocutores, deputados, ao ridículo. Sua passagem na política foi como a trajetória de um cometa, perdendo-se na vastidão de sua inteligência. Defendia as causas dos humildes e dos desvalidos. Era político oposicionista de autenticidade. Admirado pelos adversários”.
Confesso que em minhas incursões pela casa de Erasmo, direcionado sempre ao foco de curiosidades, que era uma velha cômoda de jacarandá, estilo Luís XVI, achei, certa vez, um bilhete de cunho histórico e sentimental que o ilustre médico e escritor Clarindo Santiago o presenteara pelo seu cunho jocoso e lírico. Pois bem, esse bilhete fora escrito pelo intelectual Luso Torres que era general do Exército e também tinha sido Interventor do Maranhão em tempos difíceis, e que numa noite, acometido de uma crise de hemoptise, precisou do socorro profissional de Clarindo Santiago... Eis o bilhete:
“Compadre Clarindo, estou a precisar com urgência dos teus cuidados. Vem depressa aqui em casa, pois estou botando todinho em um penico o sangue que um dia jurei derramar pela Pátria. Do teu de sempre, Luso Torres
Quis surrupiar esse pedacinho histórico de papel. Ele me flagrou e arrebatou-me das mãos. O desmazelo, sem dúvida, deve tê-lo destruído. Que pena! Eu, modéstia à parte, teria dado melhor destino àquela lembrança...
Ali, naquela cômoda, ele dizia guardar também, envolto em pano de linho cru, os originais de “O Gasômetro”, um seu romance inacabado, uma sua visão íntima de São Luís, a pedir-me que, se por ventura o olhasse com olhos de malsinar, não o tocasse; mas só achei alguns papéis anotados com tais referências; o que achei mesmo, e de arrepiar a emoção, foi “A Rapsódia das muitas Teresas”, anotações dispersas de um conto, quase novela, que acredito ter sido um dos maiores que já se escrevera pelos nossos Maranhões, tendo ficado, pela incúria e desmazelo do próprio autor, na vala do ineditismo e se perdido na inexorabilidade do tempo. Era simplesmente um monólogo, onde um feto a se contorcer, narrava, dentro do tempo devido, sua infeliz fecundação, a lembrar-nos lances de “Coração revelador”, de Edgar Allan Poe, cujas miragens de alucinação e efeitos de terror, pareciam ter transpostos uma arte diferente, em meio àquelas lâminas agitadas, a erguer-se serena e calma, numa figura de melancolia, numa atitude acabrunhada e triste.
Para minha alegria, presenciei Erasmo, na varanda de sua casa, escrever a lápis, em folhas de papel soltas e sem pautas, com sua letra firme e bem talhada, a novela “Maria Arcângela”, pausando de vez em quando, para a natural e devida leitura e para um gole reparador de aguardente. “Maria Arcângela” é uma das maiores novelas já escritas para o Cancioneiro Maranhense, onde se encontra, pela grandeza do estilo, ressonâncias de “A Peste”, de Albert Camus, vez que “Maria Arcângela” fora escrita para um cenário da epidêmica varíola que um dia assolou São Luís. O texto é digno de estar enfeixado em antologias dos melhores contos ou novelas brasileiros.
Charles Baudelaire, o tradutor em francês do poeta Edgard Allan Poe, nos diz em um belo ensaio sobre o autor de “Histórias Extraordinárias” “... “Que as notas, os costumes, os hábitos, o físico dos artistas e dos escritores sempre suscitou uma curiosidade bem legitima”, e era essa, bem se sabe, a intenção do poeta e médico Fernando Viana em fazer a caricatura em versos do nosso Erasmo, a qual foi publicada no Jornal “A Tarde”, de Salvador, depois publicado no seu “Passarela e outros perfis”:
“Este, em São Luís, é o que se ufana / com seu timbre de voz desconcertante, / de em casa possuir toda uma estante / sobre literatura americana. / Na Imprensa Oficial, onde é mandante, / percebe, mensalmente, gorda grana, / e, ali, como num plácido nirvana, / vai meditando e lendo para diante. / Desengonçado, anêmico, disforme, / no contraste do corpo, a cara enorme / dá-lhe a ambígua aparência de boi manso... / Tem talento e cultura. É inteligente / e escreve muito bem – principalmente / quando na vida alheia dá balanço...”.
Erasmo, não o de Roterdã, mas o dos Apicuns, era um homem de apurado senso estético, orientador literário de quem o procurava nesse espinhento caminho; orador de peças memoráveis, panfletário e editorialista de artigos imorredouros, como “Boi marrequeiro”, “Algodão de capoeira”, “Areias de aluvião” e outros muitos; como escritor deixou legado à história literária do Maranhão, “Páginas de crítica”, um livro de ensaios, onde comenta com vigor e técnica extraordinários, os estilos e características de James Joyce, Romain Rolland, Ernest Hemingway, Hermann Hesse, Thomas Mann e outros gênios da Literatura Universal.
Foi eleito para a Academia Maranhense de Letras, ao suceder o professor Silvestre Fernandes na Cadeira nº 15, patroneada pelo humanista Manuel Odorico Mendes, em cujo discurso de posse transcendeu à eloquência ao falar do tradutor de Virgílio
Morreu José Erasmo [de Fontoura e Esteves] Dias, em São Luís, no dia 14 de maio de 1981, por ironia, numa segunda-feira, à luz do sol das onze horas, sem conseguir serenar-se com a madrugada, como gostaria; morreu sem aquele grito de “Quincas Berro d’água”, mas serenamente; seu corpo foi sepultado no velho cemitério do Gavião, debaixo de um cajueiro em flor, sem a cruz, como símbolo do cristianismo, mas com a Estrela de Davi, ou Signo de Salomão, já que se dizia judeu, a luzir à cabeceira de sua consciência, agora verdadeiramente imortal...
* Fernando Braga