Iluminação de Sol num poente de tristeza. Sol esmaecido, em agonia... Sombras de tarde caindo... Poesia da Natureza Criadora... Noivado das emoções num murmúrio de prece... E há em tudo a presença de Deus no coração dos homens. E, nos olhos das mulheres e das crianças, a contrição dos sentimentos religiosos. No conjunto da paisagem, a fulguração geográfica da Terra, da ILHA, da cidade.
Tudo assim, Sérgio Miranda, para te sentir mais de perto, para te relembrar mais intimamente, para te rever em toda a extensão da tua vida terrena, esta que viveste na terra, a terra que um dia é berço, na terra que um dia é túmulo.
E aí estás... na expressão dolorosa da vida, na transformação do nada. E aí estás: na imobilidade que é morte. O corpo em repouso. O corpo sem vida. O corpo nesta extraordinária fascinação que não mais arrebata, mas que comove, que indica a verdadeira realidade da vida que aqui se vive, que aqui se sonha, que aqui se luta, que aqui se desgasta em sucessivas etapas de deveres e de obrigações.
E aí estás... cigarra que cantou seu último canto, na noite iluminada, as estrofes dos últimos versos e, na garganta, estrangulou o último soluço. E aí estás... cigarra que emudeceu quando cantava as últimas canções e interpretava, como tu só os sabias, as páginas magníficas das canções brasileiras. Aí estás... cigarra dos estios no abandono de ti mesmo, glorificado pelos teus sofrimentos, redimido pelas tuas decepções. Aí estás... seresteiro das noites tradicionais da cidade... nesta postura que aflige, que atormenta, que é ainda incompreensão, que é ainda dúvida, que é ainda justificativa impressionante dos mistérios da vida, da vida que já começaste a viver, da vida que é eterna, da vida que é uma continuação de outras vidas.
Tudo é assim, Sérgio Miranda. E tu o sabias. Todos sabemos que há um dia assim em cada vida. É o fim da caminhada que se inicia no berço. E caminhaste pela vida, foste criança da cidade, moleque da cidade, homem da cidade. Teu mundo foi diferente, Sérgio Miranda. Um mundo de sonhos e fantasias. Enamorado das emoções. E relembrando Coelho Netto: “um esbanjador de talento”. Uma vida em constante fulguração dos sentimentos mais diversos. Tua vida, uma eterna canção das tuas próprias tristezas e dos teus próprios sonhos. E, quando, para ti, tudo parecia uma revoada de novas conquistas – teus 41 anos – eis que tudo se modifica tão terrivelmente. Eis que tu tombas, eis que teu corpo cai, eis que escapa de ti, dramaticamente, isto que Bilac chamou: “alegria de viver”. E se não morreste num “dia assim, de Sol assim”, fechavas os olhos numa noite assim, iluminada de estrelas, feericamente iluminada de luz.
E tu bem sabes que eu te sinto aqui, tua presença aqui, fisionomia calma, e é de ti que vem ainda, nesta tarde de Sol morrendo, simbolismo do esmaecer, esta suavidade que é um balsamo de consolação, uma mensagem de resignação, de fé e de crença, que é Amor. Este amor que redime e que perdoa.
Sei que me estás ouvindo, ouvindo o boêmio que ficou, o companheiro das serenatas, o companheiro das noites perdidas, vividas por nós, na grandiosidade desta boemia do espírito. E vim para te sentir, já o disse, mais intimamente. E a cidade, Sérgio Miranda, palco da nossa existência, se vestiu de tristeza não para ti chorar, mas para te glorificar nesta tarde, à sombra dos ciprestes. Nas suas ruas, nos seus becos, nos seus botecos, nos seus bares, nos seus bairros, nas suas ladeiras, por toda a parte, viva estará a tua presença. Tu eras a alma da cidade, seu intérprete inconfundível. E nas noites enluaradas, salpicadas de astros, estrelas, sóis, tu voltarás a cantar no silencio das nossas recordações. E aqui, tantas vezes, virão os pensamentos dos boêmios que ficaram para ungir de saudade este teu túmulo.
Será assim, Sérgio Miranda. E até logo, amigo. Até logo, companheiro das horas alegres e cheias de amarguras. Até logo, companheiro das serestas da cidade. Não é uma despedida. Ninguém, Sérgio Miranda, se despede à beira do túmulo. Porque é aqui a verdadeira morada dos que vivem na terra. Até logo, Sérgio Miranda...
* Paulo Nascimento Moraes. In “A volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 22/9/1963 (domingo)