José Raposo Gonçalves da Silva [Grajaú, Maranhão, 27 de maio de 1903 – 10 de abril de 1976] usava o pseudônimo de Amaral Raposo e era, o que se pode dizer, com todas as letras, um homem extraordinário. Relembro Amaral com muita saudade, honrou-me com sua amizade, ensinou-me muitas coisas, me divertiu com suas histórias e me fez ouvir muitas canções bonitas [músicas e versos seus] acompanhados pelos acordes que, magicamente, produzia em seu violão, companheiro inseparável de memoráveis serestas.
Filólogo, Amaral era um purista do nosso idioma, sempre na espreita para apontar alguma asneira que descobrisse em ultraje à língua em que Camões cantou o bravo peito lusitano e que também pediu esmolas, gestos que levaram o professor Sebastião Jorge a registrar que Amaral Raposo “não tolerava escorregões, nem pequenos deslizes por parte daqueles que se aventuravam em fazer acrobacias na superfície imaculada de uma página de jornal ou de um livro”.
Fernando Viana [escritor, médico e político maranhense] que tinha Amaral Raposo guardado em seu coração, o levou consigo quando foi estudar Medicina na Bahia. Enquanto Fernando Viana estudava, o nosso Amaral tratou de arranjar um “bico” no jornal “Correio da Tarde” para pagar a pensão, e às noites, quando o futuro tisiologista manuseava os grossos volumes da Ciência de Hipócrates, Amaral dedilhava o doce e saudoso violão para deleitar o amigo. E, assim, foram os seis anos da formação do querido companheiro na cidade de Salvador. Um belo dia, Fernando Viana mandou, para o próprio jornal em que o Amaral trabalhava, o seguinte soneto que era um perfil irretocável do seu querido parceiro.
Diz assim:
“Mistura de filósofo e de cético, / na completa inversão de um dom Donzel. / É um gozo vê-lo, súbito, apoplético, / sobre os doces de a vida pingar fel. / Tendo horror ao grotesco, a que cruel, / pulveriza sem dó – seu senso estético / ora, fá-lo vestir-se qual Brummel; / ora, impõe-lhe um desleixo ultrassintético. / Poeta, de um lirismo que comove. / Tem olhos tumefatos, que nos dão / a lembrança do Mal de Basedow. / Boêmio de nascença e profissão, / É-lhe a prova, mais certa que as do nove, / um cigarro, uma cana e um violão”.
Em tempo: O nosso Sálvio Dino, há pouco falecido, ao fazer o necrológio de Amaral Raposo na Assembleia Legislativa, após o seu sepultamento a 11 de abril de 1976, compara seus sonetos “As Fábricas” e “Postal”, “entre os melhores sonetos brasileiros de todos os tempos e coloca o poema ‘Só’ em nível dos poemas de angústia dos mundialmente famosos de Edgar Allan Poe, Oscar Elide e Reading. [...] Zeca Gonçalves foi também grande solista de violão, tanto na música popular quanto na música de câmara e erudita [...]”. E para concluir este seu pequeno perfil biográfico, enfatizou Sálvio: “transcrevo, a seguir, a opinião do insigne professor de Direito Penal (seu cunhado) Dr. Antenor Mourão Bogéa: ‘Para o poeta inspiradíssimo, para o tribuno fulgurante, para o editorialista escorreito, para o filólogo abalizado, para o violonista aplaudido, para a figura prototípica da simplicidade, para o humorista eçaniano, que tudo isso foi Amaral Raposo, voltam-se as atenções da expoência intelectual do Maranhão”.
Amaral Raposo, ou simplesmente Zeca, foi eleito para a Cadeira nº 37 da Academia Maranhense de Letras, patroneada pelo poeta Inácio Xavier de Carvalho, vaga, por ironia, com o falecimento do Dr. Luís Viana, irmão de Fernando Viana e também médico. Amaral Raposo espalhou pela cidade que iria fazer um discurso de posse sem verbo. Os que acreditavam em Amaral Raposo estavam certos de que o velho mestre seria capaz de tal façanha, apesar de o verbo ser o ponto de ligação entre as orações; sem a presença do verbo se torna muito difícil a comunicação, mas ele nos dizia que era possível; outros duvidavam daquela proeza.
E de fato aconteceu... Em certa altura, na peroração discursiva, Amaral Raposo num rasgo, justifica a proeza da tal oração sem verbo:
“Feita esta breve digressão, quero, ainda, salientar um episódio, cuja referência me parece oportuna. É que eu, tempos há, em palestra informal com amigos, tinha dito que faria meu discurso de posse, inteiramente sem verbos. E – adiantei – para substituir uma individualidade excepcional como Luís Viana, algo de excepcional se me afigurava mister igualmente realizar.
Ouviu-me dizer isso o jovem e conhecido cronista Benedito Buzar, e, bom profissional que o é, registrou o fato por mais de uma ocasião, em seu jornal.
As notícias não correm; voam. Assim, sem demora, até a imprensa da Guanabara comentou, com antecedência, o discurso que eu iria pronunciar, anunciado, aliás, por mim, e, por simples blague, numa ligeira palestra de bar.
Em tais circunstâncias, já agora que sou compelido a cumprir, embora em parte, a promessa, ou a empresa a que me aventurei, bem inadvertidamente.
Consegui-lo-ei? Dir-no-lo-á, depois vosso julgamento, Senhores Acadêmicos: (1)
Eis o texto sem verbo:
“Onde, agora, os elementos essenciais à consecução da meta em pauta? Ante o fulgor sideral da personalidade de Luís Viana, surpreendente de ilustração e de cultura, onde em mim, a energia espiritual, a força de análise, os recursos de intuição, e, ainda, os documentos imprescindíveis ao estudo e à crítica para o elogio do vitorioso didata?
Onde, em mim, a esta altura de uma existência, sem brilho e sem relevo, portador de um coração já deserto de impulsos criadores e de uma alma já órfã de esperanças, de idealismo e de sonho, a conquista dos clarões mentais, indispensavelmente necessários ao exame de tão preclaro representante da capacidade científica maranhense, das vitórias literárias maranhenses, dos triunfos poéticos maranhenses, sobretudo da extraordinária vocação pedagógica do insigne conterrâneo, tão viva e palpitante, entre as cogitações desse grande vencedor de mil batalhas, nos altiplanos da erudição e da sabedoria?
Por isso mesmo, para quem as solenidades desta noite? Para quem esta reunião dos mais categorizados expoentes do nosso romance, do nosso periodismo, de nossa poesia, de nosso teatro, de todas essas multifárias e luminosas atividades, presentes, sempre, nas elevadas preocupações dos homens de pensamento e de cultura?
Acaso por minha causa, acaso para mim, obscuro combatente de campanhas sem vitórias, para mim, vaga figura sem projeção e sem nome. Além das fronteiras provincianas de nossa terra? Certo de que não. Para quem esta honra grandiosa, tão repleta de beleza espiritual, de encantamento e de sonho? Para mim, para a inútil insignificância do meu nada?
Não ainda, para quem, pois, a homenagem? Para Luís Viana, para o infatigável mestre de sucessivas gerações, para o professor do Instituto de Manguinhos, para o belo cronista de “O Estado de São Paulo”, para o diretor da Instrução Pública da Paraíba, para o catedrático de História Natural do Liceu Maranhense; e, num crescendo (2) incessantemente de funções e de cargos, cada qual mais à altura de nossos louvores, de nossa admiração e de nosso respeito? Para o diretor do Liceu Maranhense, para o idealista e o pioneiro da Escola Normal do Maranhão, para o fundador, logo depois, do colégio de “São Luís”, essa tradicional fonte de educação moral e cívica de nossa mocidade estudiosa”.
Notas de Amaral Raposo:
(1) Conseguiu, pois, a oração fazê-la sem verbo?
(2) “Crescendo”, no caso, é substantivo. Dizem os dicionários: s.m. progressão, gradação.
* Fernando Braga, in “Conversas Vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.