No baú velho das coisas esquecidas, encontramos esta página que abaixo transcrevemos. Não alteramos nada. Apenas não identificamos a personagem que a escreveu. E até parece que cometemos um erro em publicá-la. Mas pareceu-nos que ela merece um endereço certo. E o endereço escolhido, por nós, aí está – os nossos leitores... Mas... Bem, vamos ler a página.
“Estou lhe escrevendo, Carlos Alberto. E custou-me esta resolução. Acredite. Mas a presença de Marilda, nossa filha, impôs-me este sacrifício. Mas, para lhe falar de Marilda é preciso registrar lembranças. E estas, hoje, têm o amargor de todos os constrangimentos. Mas é preciso. E Marilda surgiu no momento exato em que nós caminhávamos juntos pela vida. Um sonho vivendo dentro de nós. Uma felicidade que não parecia fugir. Encontramo-nos em plena mocidade. Da aproximação festiva, irradiação do espírito, para as impressões que nos empurraram para o DESCONHECIDO, foi um nada. As impressões evoluíram. A amizade envolveu-nos. Tornei-me presa fácil. Lembra-se, Carlos Alberto? E de você vinha toda uma atenção profundamente humana. Dominadora. Eu acreditava em você, Carlos Alberto. Acreditava no seu amor. Talvez o nosso erro, Carlos. Mas... Não me foi possível fugir nem de mim e nem de você. A nossa vida entrelaçou-se. Sentíamos, assim eu pensava, que não poderia haver mais dúvida, que, com você, eu estava amparada, realizada. Eu tinha você, Carlos Alberto. Era uma certeza encantadora. Você se lembra, Carlos? Senti exigências nos seus olhos. Uma mensagem de súplica... Quis fugir, evitá-lo. Não pude. Já havia uma resolução em mim. Cedi... Não, Carlos, entreguei-me... Tinha consciência do que estava fazendo. No entregar-se, havia, para mim, o sentido mais profundo de espontaneidade. Havia sim, Carlos. Entreguei-me com a suavidade dos meus sonhos, com a força sentimental dos meus desejos. Lembra-se, Carlos? Um Instante de nós, de nossas vidas em nós. E quando vi você naquela noite, só eu sabia que deixara com você, no seu leito de solteiro, a minha condição de menina-moça. Eu voltava menina¬-mulher. Eu sabia, você sabia que eu acordara mulher nos seus braços. O que nós não sabíamos é que, ao me afastar de você, eu era mais que mulher. Era mãe, Carlos. Mãe de Marilda. De Marilda sua filha, minha filha. Nossa filha. E quando a certeza surgiu diante de mim já você se tinha ido. Ido para não mais voltar. Você fugia, Carlos. Você corria da sua responsabilidade, da nossa responsabilidade. Lembra-se, Carlos? Depois da POSSE de mim, você desapareceu, e eu ficava. Mas ficara comigo esta Marilda que se parece com você, que tem seus olhos, que lembra você em tantas coisas... Mas, para que continuar relembrando...
Ela, ontem, me disse: ‘Quero ir para onde papai’... Carlos, ela já diz coisas que comovem. Tem seis anos, Carlos. Fala tudo. Come tudo. Não esquece o pai que não a viu nascer. O pai que ela sabe existir porque a ensinei a lhe querer muito. Digo para ela que você está distante. Trabalhando para ela e que, um dia, você voltará para nós!... Mas, Carlos, eu estou doente... Tudo perdi... Só tenho Marilda. E para ter Marilda, para tê-la comigo, para garantir a sua subsistência, prostituí-me, Carlos Alberto. Fiz tudo para poder ficar com você distante, esquecida embora, e com Marilda. Lutei multo. Resisti muito. Mas eu estava só, Alberto. Eu e Marilda. Eu e a virtude deste erro. Você se fora. Tudo de pior aconteceu. E tive de ceder. Tão diferente do entregar-me a você. Com este CEDER, havia humilhação. Havia a vergonha ofendida, o pudor massacrado. Custei-me a acostumar-me... A gente costuma-se com tudo, Carlos. A necessidade é uma má companheira. Necessidade que é miséria... que é fome... E todo um tempo nesta vida de humilhações... Marilda tem seis anos... Está crescida. E agora que mais precisa de mim, eu me sinto morrer. Ela não sabe de nada. Mas o mal se prolonga. A vida foge todos os dias. Uma questão de tempo. Talvez um ano mais e já não mais exista. E diante disto, de Marilda quase que no abandono de mim, resolvi lhe escrever. Não sei se você lerá esta missiva. E se a ler, não sei, não faço uma ideia sobre as suas reações. Mas era preciso que lhe escrevesse, que lhe dissesse tudo isto. Junto a esta vai o meu endereço. O endereço de Marilda. E, se você não vier, quero que saiba que lhe perdoei. Sempre é bom perdoar aos que nos fazem mal. E, se você se resolver, venha para esta que diz para mim: ‘– Quero ir para onde papai’”.
Aí está a página que ficou perdida na rua. Nós a encontramos há muito tempo... Tem as folhas amarelecidas... E voltaram para o baú velho das coisas que se escondem desta realidade terrível que aí está como uma página do tempo...
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 16 de junho de 1963 (domingo)