BOI CORAÇÃO (*)
I
Meu São João, meu São João, nosso São João,
põe fora o cinza-escuro deste dia:
o mundo, a Ilha do Amor, o Maranhão
são cores, são cantos, são alegria!...
Que as nuvens de chumbo se tornem vida!
Que a vida seja em toadas e terreiros!
Zabumba, matraca, orquestra – a partida,
pra dança, o toque, o som, bens brasileiros.
O sol, ciclópico, abre seu imenso olho.
As casas, os prédios abrem janelas.
Gente em ruas e praças, saindo do molho
... E viva o bailado das índias belas!...
Penas e penachos, chapéus e fitas...
Máscaras, mulheres, homens, meninos...
Coisas, corpos dançam dança bonita
– e o boi baila e volteia, e os cantos são hinos...
Catirina, Pai Francisco, esta voz
é amor, é fé, esperança – força do coração.
O boi não morre porque vive em nós:
a ressurreição do boi é a nossa ressurreição.
II
Nuvens descolorem o dia e a noite.
O cinza-escuro espicha-se pelas ruas, espraia-se pela orla, invade as casas, escala os prédios e, sem bater, instala-se em nós.
Rostos se desbotam, chapéus e máscaras perdem luz e, com ela, a cor, o brilho.
Penas e fitas pendem e também perdem beleza, maciez.
Pernas não bailam, braços não se dão, troncos não coleiam, rostos não se tocam, olhares não se cruzam...
Mas eis que a luz novamente se faz.
De uma corda cardíaca extrai-se um acorde córdio que parecendo acalmar quer despertar para o baticum da vida. Som da vida. Ávida vida. Ave da vida.
Ao fundo, matracas anunciam a marcação dos passos devidos, entoam um ritmo de resistência. É a volta. É a vinda. É a vida.
O chapéu, como coroa solar, é minivulcão regurgitando cores, expelindo brilhos, convergindo olhares.
Agora tudo é movimento. Rostos riem. Mãos se dão. Braços abraçam. Olhos se olham. Passos em compasso. O boi volteia. Meneia. Negaceia. Faz que vai, e volta. Faz que volta, e vai.
E em um desses vais... não volta.
Pai Francisco não nega Catirina.
E pega do boi a língua.
Que nos diz que escuridão se acaba com cores.
Que o amor é a cura para as dores.
Que a vida está em um sorriso de criança.
E que tudo faz sentido e vale a pena – se houver esperança.
Esperança – trilha sonora da vida.
III
O cinza-escuro estava nas nuvens, estava nas ruas -- mas não era das nuvens, não era das ruas.
O silêncio da orla e até da onda do mar não era silêncio da orla, da onda, do mar.
A solidão das praças, a descor das faces fêmeas, o desbotamento dos olhos, o sem brilho dos chapéus, penas, fitas e máscaras não eram isolamento das pedras, mudez das gentes, desluz de adereços.
O não som dos tambores, o sem ruído das matracas, o sem zoeira, sem zunido e sem zum-zuns das vozes não eram calmas de instrumentos nem desfala de pessoas.
Tudo o que era lá fora era o que estava lá dentro. Dentro das pessoas dentro das casas. Dentro de nós.
Mas – fiat lux! – o Sol se faz dentro do ser. E o ser faz ter cores claras, cores lindas nos céus, companhia nas ruas, alvoroço nas praças, cores nas faces, barulho no mar, brilho no olhar, nas fitas e chapéus, nas penas e penachos.
E há som nas matracas, e bomba o bumbo, e ribomba o zabumba. E pessoas cantam e dançam. E pés passeiam, e bailam, e volteiam. E bumbuns bambas bambeiam.
O bumba meu boi vive porque vive no coração.
**
E mais u’a vez canto, bailado, encantamento;
se ouve, se vê, na praça, terreno, terreiro,
história, alma, humor, desejo, drama, tormento,
Catirina, Francisco – povo brasileiro.
* EDMILSON SANCHES
(*) Textos produzidos a convite do produtor musical Chiquinho França, de São Luís. A linha temática é o silêncio e a descoloração dos tempos pandêmicos de confinamento e o desejado futuro pós-pandemia, com o ressurgimento da alegria, dos sons, do canto, da dança, das cores – elementos presentes no bumba-boi.