(DAS LEMBRANÇAS DE UM POETA CAXIENSE E SEU POEMA)
No último domingo, 27 de setembro, o poeta caxiense Raymundo Nonato da Silva completou 37 anos de morte (ou encantamento, segundo a máxima de que escritores, em especial poetas, não morrem – encantam-se).
Em 27 de setembro de 1983, com apenas 46 anos, morreu Raymundo e para sempre ficou Déo. Déo Silva. Um dos mais representativos poetas da contemporânea literatura brasileira, maranhense, caxiense.
Rapazote ainda, eu era frequentador assíduo do “Recanto dos Poetas”, o famoso Bar do Artur Cunha, ali na Rua São Benedito, frente para a praça da Igreja de mesmo nome, em Caxias. Naquele “agradavelmente anti-higiêncio bar”, como uma vez o defini, reuniam-se nomes como Déo Silva, Vítor Gonçalves Neto, Arias Marinho, João Leitão e seu irmão José Leitão, Rodrigo Octavio Teixeira de Abreu (o Tavico), o próprio Artur Cunha (que assobiava e chupava cana, isto é, atendia a freguesia e participava do jogo de “impugna” e das conversas e altas discussões), Cid Teixeira de Abreu, e Edmilson Sanches, o único menor de idade em um grupo de homens que eram jovens há mais tempo – bem mais tempo – que eu.
Todos nos reuníamos em torno de uma mesa, alguns copos e diversos dicionários. Além de conversa fora, jogávamos a tal “impugna”, um jogo de palavras que consistia em ir acrescentando (“jogando”) letras a uma letra inicial jogada, sem deixar que se formassem palavras (não valiam monossílabos). No jogador em que terminasse a palavra, aquele levaria um ponto negativo – e poderia pagar a “rodada” de bebidas. Se alguém “apelasse” para uma palavra “difícil” ou inexistente, os diversos dicionários – possivelmente os mais úteis ou mais consultados de Caxias, de propriedade do Artur) – estavam ali, sendo manuseados, mãos e dedos ágeis, sôfregos e perspicazes à cata do termo, do nome, do verbete.
(Exceto por gozação, era difícil apelar para palavras não formalmente existentes, sobretudo porque ali era um ambiente de “feras” das letras, jornalistas, escritores e leitores vorazes, diversos deles professores). O Artur Cunha cunhou uma expressão que se tornou axiomática: ser o jogador depois de Edmilson Sanches era “levar uma de quati”, querendo dizer que o jogador que fosse o próximo depois de mim pegaria um “osso” (numa referência ao ossinho, chamado báculo, no genital do bichinho). Isso porque eu jogava “duro”, frequentemente colocando uma letra que deixava o próximo jogador sem opção, a não ser encerrar a jogada, seja porque a palavra forçosamente terminaria nele, seja porque, por ser "difícil", não havia como continuar a palavra.
Com efeito, na adolescência, eu era cultor de livros, inclusive dicionários, e memorizara alguma coisa, além do recurso de decorar sem esforço os morfemas e afixos, elementos de formação de palavras (prefixos, infixos, sufixos etc.), o que funcionava como recurso dentro das “estratégias” do jogo.
Foi nesse ambiente nublado de cigarros, fluido de álcool e letras em suspensão que conheci Déo Silva. O bigode, o cigarro, o corpo descansando folgada e naturalmente, derreado numa cadeira.
Afora os da geração dele, que conheceram a pessoa, não são muitos os que conhecem o poeta, o escritor, que viveu meros 46 anos e deixou uma obra para séculos, marcante, consistente – embora não a ponto de sensibilizar, de despertar o interesse de muitas mentes dos dias de hoje e dos muitos anos dos ontens, e, parece, infelizmente, dos muitos amanhãs que hão de vir.
Da vida de Déo Silva sei de seus livros “Ângulo Noturno”, de 1959, e o famoso “Equação do Verbo”, de 1980, além de, pelo menos, uns oito inéditos, listados pelo poeta Wybson Carvalho.
Por enquanto, de memória, sem consultar ou conferir livros e amigos, falo do episódio que teria sido a gênese de um dos seus mais belos poemas (igualmente transcrito aqui de memória, sem saber as exatas palavras e sua disposição na arquitetura poemática. Prometo redimir-me tão logo esteja com o original em mão.
Todo poema tem sua história, ou dá uma. Pois bem. Conta-se que estava Déo Silva em São Luís. Situação difícil. Liso. Sem dinheiro. Já o último cigarro prensado aos lábios. Precisava ir para a rodoviária. “Arriscar” uma passagem com eventual passageiro conhecido que por lá também estivesse.
A rodoviária, do ponto em que Déo estava, era longe. A pé. Muito longe. Chuva. A pé. Muita chuva. Começa a cair a noite. Então, aparece do nada o bandido, mal-amado e bem-armado.
Do encontro do ladrão e do poeta surge o poema:
_Na rua,
a escuridão.
Eu
e um ladrão.
“– A bolsa ou a vida”.
Ambas vazias._
* EDMILSON SANCHES