Há dias, respondi a um questionário elaborado por Natércia, neta de Nascimento Moraes Filho, como instrumental para sua tese de doutorado, quando me perguntava qual era o real sentimento pelo autor de “Pé de Conversa”. Respondi que o meu sentimento era, ao mesmo tempo, filial e fraterno, porque foi ele que, numa certa tarde, me arrancou das mãos os originais de “Silêncio Branco”, meu primeiro livro de poemas e fê-lo editar pelo Departamento de Cultura do Estado, sob a direção, na época, do querido Dominguinhos Viera Filho, que, de pronto, escreveu as orelhas e deu a apresentação para Erasmo Dias, já que eu tinha a unção de Fernando Viana, Bacelar Portela e Rubem Almeida; a capa entregaram-na para Pedro Paiva Filho... Creio que fora um excelente batismo para um jovem de 20 anos... E é justamente a ele, Zé Moraes, o meu Cireneu, a quem escrevo estes apontamentos para jornal, porque foi, por suas mãos, repito, que um dia cheguei aos valores reais de minha terra.
Este poeta, ensaísta e folclorista chama-se José Nascimento Moraes Filho, São Luís, 15 de julho de 1922 – São Luís, 22 de fevereiro de 2009. Deixei o verbo no presente, porque homens como ele não morrem nunca e nunca saem de cenário, principalmente quando seu grito, também de jovem, arrancou da crítica brasileira, e do outro lado do Atlântico, os crivos merecidos.
“Poetas meus irmãos, / acompanhai o meu grito! / Eu sou o sofrimento dos sem nome! / Eu sou a voz dos oprimidos”.
Assim ecoava o grito libertário de Nascimento Moraes Filho por meio do seu “Clamor da Hora Presente”, a estilhaçar métodos e conceitos, com sua poesia social e participativa. Era um poeta que já nascia maduro, egresso do Centro Cultural Gonçalves Dias, ao lado de Clóvis Sena, Vera Cruz Santana, Agnor Lincoln da Costa, Clineu César Coelho, e outros talentos, que, ao tempo, se reuniam nas escadarias da Igreja do Carmo, bem antes do movimento “Ilha”, que se reunia na “Movelaria”, de propriedade do pintor Pedro Paiva, que congregava José Sarney, Bandeira Tribuzi, Lago Burnett, Ferreira Gullar, Floriano Teixeira, Cadmo Silva, Antônio Luís Oliveira, Yêdo Saldanha, José Bento Neves, dentre outros... Era essa a plêiade dos jovens intelectuais da época que viriam a formar a famosa Geração de 45 maranhense..
Sobre esse seu canto de estreia de Nascimento Moraes Filho, disse Otto Maria Carpeaux, numa página inteira do “Correio da Manhã”, do Rio de Janeiro, de onde este excerto diz tudo: “Inspirou-me grande simpatia. Agradeço a oportunidade de entrar em contato com a alma de um poeta realmente generoso e forte”.
Zé Moraes, como era conhecido, não despontava apenas por ser filho do mestre Nascimento Moraes, “O lutador”, catedrático do Liceu Maranhense e um dos maiores intelectuais do seu tempo; nascia ele da espontaneidade do seu talento, da explosão dos seus gestos de revolta, como címbalos a retinir no bronze, como era sua voz grave a trovejar sempre ao lado da equidade e da justiça.
Nascimento Moraes Filho pertenceu a nossa mais autêntica “Bélle Époque” a se reunir costumeiramente no “Atena Bar”, na Rua de Nazaré, onde numa das paredes, à direita de entrada do boteco, estavam as mais nobres assinaturas de intelectuais do Maranhão e deste velho Brasil, os quais, de passagem por São Luís, e quase sempre hospedados no Hotel Central, ali perto, eram chamados para participar daquele tradicional rito. Se o Raimundo, dono do bar, soubesse o valor daquele patrimônio, teria inventariado a parede em separada, antes de negociar o estabelecimento.
Vejam esse lance de boêmia e generosidade: Nascimento Mores Filho chegou ao ponto de organizar uma caixinha de contribuição de todos que frequentavam o “Atena Bar” para pagar os ‘tragos e cervejas’ de poetas e pensadores menos afortunados...
Foi numa dessas ocasiões que Zé Moraes apresentou ao Maranhão (lê-se São Luís) um dos seus filhos ilustres, mas que, infelizmente, não era conhecido ainda pela maioria de seus conterrâneos, vez que saiu de São Luís muito moço com destino aos mistérios amazônicos, atraído, já ao tempo, pelos estudos da etnologia, e depois se transferindo em definitivo para o Rio de Janeiro. Essa figura era Nunes Pereira, etnólogo e botânico, um cientista do mesmo porte intelectual de Roger Bastide, de Arthur Ramos e de Levy Straus; no entanto, Nunes Pereira fora nascido e criado bem ali na Casa das Minas, na Rua de São Pantaleão, filho de Mãe Almerinda e afilhado da Nochê da Casa, Mãe Andreza Maria, nome que, com emoção, dei à minha filha, exclusivamente em sua homenagem. Nunes Pereira dá nome hoje a uma das alas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, pertenceu as Academias Maranhense e Amazonense de Letras... Deixou grande bibliografia nesse campo científico, e mais outorgas brasileiras e estrangeiras e o Prêmio Roquette Pinto, da Academia Brasileira de Letras, pelo seu trabalho “Morunguetá: um Decameron indígena”. Honrou-me muito ter o velho Nunes Pereira como querido amigo e mestre... Quanto aprendi com ele... E se mais soubera...mais teria aprendido!
Voltando o fio à meada, sobre os quefazeres literários de Zé Moraes, disse o velho Nunes ser ele um “escritor maranhense cuja obra merece minha admiração e o meu apreço, como nenhum outro aqui já por mim lido e analisado (...) sua capacidade de pesquisador e de verdadeiro mestre, senão discípulo de Smith Thompson...”
Já eu estava fora de São Luís, quando o contingente boêmio e literário, egresso do “Atenas Bar” que fora demolido, mudara-se para o “Restaurante e Bar Aliança”, do sempiterno lusitano António Tavares, tendo, ele, Zé Moraes, estabelecendo-se de corpo presente na “Esquina do protesto” ou do “fuxico”, nas imediações da Praça Benedito Leite, como passou a ser chamada, para “bater’ forte” em defesa da conservação ecológica da Ilha ameaçada por desastres ecológicos de uma multinacional. Se essa derrocada não aflorou como ele a construíra no seu imaginário de homem de bom senso, plantou, para os pósteros, aquela revolução de ideias eternizada por Santo Tomás de Aquino quando diz que se protesta quando o bem comum está seriamente ameaçado; quando o alvo da contestação é tido como desnecessário pelos homens prudentes na organização social em que vivem; quando houver forte probabilidade de êxito e quando o provável dano feito pelo protesto não seja maior que o provável dano feito pela ausência dele, e finalmente, quando não houver outro remédio que conjure o perigo que ameaça o bem comum... Foi isso que ele fez!
Foi Zé Moraes o descobridor de Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista maranhense, depois de longa e constante pesquisa em jornais e documentos pertencentes ao acervo da Biblioteca Pública Benedito Leite; foi ele, Zé Moraes, que ao buscar, no folclore maranhense, encontrou preciosidades e as fez publicadas no seu “Pé de Conversa”; foi ele que, numa antologia, selecionou poesias, contos e cantares do Natal, de autores maranhenses e os enfeixou no seu “Esperando a Missa do Galo”; foi ele quem escreveu “Esfinge do Azul”, onde se transforma num moleque lírico que briga por uma estrela, a mostrar a beleza da poesia em sua simplicidade.
Como funcionário público [Fiscal de Rendas do Estado] entrou em disponibilidade por não aceitar ser impelido a certas práticas viciosas do sistema, na época, institucionalizadas, em prejuízo ao fisco que defendia. E nunca mais assentou os pés na tal repartição, tendo morrido com seus proventos reduzidos.
José Nascimento Moraes Filho é, para minha honra, o patrono da cadeira nº 23 que ocupo na Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política. Foi ele a mais retumbante voz social e política do Maranhão por todo o século XX e o criador da poesia social maranhense...
Aqui está o homem em frente da ética e da moral para dizer: Presente!
Este é meu grito de saudade a José Nascimento Moraes Filho que esbravejava o presente, a orgulhar-se do passado e a esverdear-se numa indomável esperança no futuro...
* Fernando Braga, in “Conversas Vadias” [Toda prosa], antologia de textos do autor.