Aqui estamos nós, teus filhos e teus netos, à beira do teu túmulo, não para depositarmos flores, para registrar a homenagem do respeito e da veneração. Não para te sentir na saudade que é imorredoura. Não, Nascimento. Aqui estamos, tu estás vendo, trazendo para o teu túmulo o corpo sem vida. Mutilado, de um dos teus netos: JÚLIO CÉSAR.
Ei-lo aí no seu caixão de pinho, olhos parados para a vida e abertos para a Morte. Ei-lo aí na imobilidade terrível. Ei-lo aí para a tua bênção espiritual. Ei-lo aí no seu dormir eterno.
Que fez ele? Perguntarás. E eu te direi: NADA. Nada, Nascimento Morais, meu amigo, meu mestre, meu Pai.
Ele estava na Vida, estudante do Colégio São Luís. Tudo nele a festa da idade, da juventude. Travesso, inteligente, JÚLIO CÉSAR estava na noite iluminada da cidade, nossa cidade, Nascimento; nossa São Luís. Estava ali na Rua Oswaldo Cruz, junto do Edifício Caiçara. Olhava a noite. Conversava com seus colegas, meninos de sua idade. Ouvia malícias. Dizia-as. Contava histórias, coisas próprias da idade, dos seus 16 anos. Estava lá. Sempre esteve ali. E, de momento, no instante em que ele tentava abandonar a esquina, em que procurava atravessar a rua, é atingido por um veículo que, desenvolvendo velocidade, joga-se contra JÚLIO CÉSAR que é sacudido para cima do capô. Seu corpo descreve uma hipérbole deformada. Segundos, fica no ar; desamparado, sem defesa, despenca para o asfalto. Dele, ouve-se, à distância, o grito de pavor. A vida fugia-lhe nesse grito. Depois, o baque surdo do corpo. Do corpo grudando-se com o cinzento do asfalto. Torcido, fechado sobre si mesmo, o menino. JÚLIO CÉSAR, seu neto, Nascimento.
Aí fica. O veículo passa. Minutos depois, está no Pronto-Socorro. Sobre ele, tem início os cuidados médicos. Com os médicos, dedicados, a luta para devolver ao menino a Vida. Mas, Nascimento, ele, teu neto, não vivia mais a VIDA. Com ele, apenas, a vida vegetativa. A vida funcionando involuntariamente, inconscientemente. Com o garoto, a resistência contra as costelas partidas machucando os pulmões, compressão do tórax, fraturas na cabeça. A morte plantada no rosto: olhos vidrados, articulações paradas, e ele sem ouvir, sem falar, sem ver. Treze dias nisto. Nisto que é tormento, que é dilaceramento, que é agonia, que é inferno. Mensagem de solidariedade humana nos olhos dos parentes, dos amigos, dos colegas.
No asfalto, a marca dos pneus do carro atropelador denunciando a violência, acusando a brutalidade do choque com o menino que espiava a noite, que ouvia histórias. Adiante, silenciosa, a esquina. Mais adiante, a casa de JÚLIO CÉSAR, a casa que ele não mais veria e, dentro dela, Nascimento, as tuas estantes, os livros, os irmos, a Mãe, o lar, o lugar onde ele sempre estava... agora sem ele, sem a presença da sua alegria, da sua alma no transbordamento dos sonhos.
DOR, Nascimento, no coração de todos. No Centro Médico, com JÚLIO CÉSAR, o estágio da morte. Entrou e de lá saiu morto. A casa, o lar, há poucos momentos o recebia diferente. O lar, a casa que o via na alegria, na inocência, na rebeldia, tinha-o de volta com os olhos fechados, coração parado, seu corpo dentro deste caixão de madeira.
Trouxemo-lo para TI, Nascimento. Vai ele ficar no teu túmulo. Recebe-o e guia-o para o GRANDE ARQUITETO DO UNIVERSO.
Nós ficaremos ainda.
Na noite, no asfalto, sempre haverá um louco no volante de um veículo matando crianças, enlutando lares, deixando país e mães aflitos, plantando, nos canteiros da Vida, a sementeira da morte.
Meu garoto JÚLIO CÉSAR, adeus!
Nascimento, guia-o para o encontro com o Nazareno.
Nota:
Discurso pronunciado quando do sepultamento do estudante Júlio César.
* Paulo Nascimento Moraes.“A Volta do Boêmio (inédito) – “Jornal do Dia”, 19 de novembro de 1967 (domingo).