Nada há de espanto, ou risível até, saber-se que, entre a psicanalise e a poesia, existe um protocolo existencial, onde a poesia não é mais como dantes, um grito, ou um laivo apenas literário, mas um sinal inconteste da própria vida psíquica do ator que a exercita, cuja hermenêutica, nesse sentido, já prova as descobertas de Hamlet, Macbeth, Homero, Sófocles e outros tantos mitos ou não, advindos da criação humana.
E não há de ser avaliados nesse calabouço da alma, versos certos ou errados, rimados ou não, ritmados ou não. É exigido apenas o sentir. Se houver esse sentir, sua essência será submetia às maravilhas do instante.
Com isso, faz-me crer, agora mais do que nunca, na veracidade do velho axioma de que todos nós, de poeta, psicólogo e louco, temos um pouco!
O poeta português Antero de Quental, e outro não fora e nem poderia sê-lo, já com os nervos emaranhados em pânico, dissera divinalmente em um soneto, que certo espectro mudo, grave e antigo andava consigo sem permitir-lhe que nada falasse, porque também para conversas era maldisposto. Mas uma só vez o poeta ousou perguntar-lhe com grande abalo: “– Quem és, fantasma, a quem odeio e a quem amo?” E o espectro respondeu: “– Teus irmãos, os vãos humanos, chamam-me Deus, mas eu por mim não sei como me chamo...” O espectro chamava-se Inconsciente.
No antológico poema de Carlos Drummond de Andrade: “no meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho”, a repetir-se como se fosse uma oração solitária praticada pelos bizantinos-hesicastas, a desparzirem uma sensação de cansaço, a psicanalise com seus arquétipos, nos revela que essa tal pedra é o “desbloqueio de acesso ao logos da razão”. Espantado, perguntaria o gênio de Itabira: “E agora José?”
E este José, não é outro, senão o nosso Saramago, a nos dizer em “Ensaio sobre a cegueira”, que “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”; por ser ele um crítico existencial, um ateu confesso e quem sentenciou “haver coisas que nunca se poderão explicar por palavras”, pergunta-se: o que se passava nos subterrâneos do português, prêmio Nobel de Literatura?
Ainda nestes misteriosos mergulhos, o sacerdote francês Jean-Yves Leloup, doutor em filosofia e psicologia, autor de vários livros sobre o Cristianismo, leva-nos às profundezas do inconsciente, a nos revelar em suas reflexões sobre as Bem-aventuranças e o Pai-Nosso, “que nós não aprendemos nada, e sim recordamos tudo”, na esteira da visão platônica do “Ser que me faz ser”. Na volta, à tona da lógica, surge como alternativa aquela velha dúvida clássica: existirá em tais meditações um retrocesso de vidas passadas, que religiões e cientistas fogem sem dar explicações?
Mesmo sabendo da simbiose fenomenológica da poesia com o psique intelectivo, sob os enigmas da equação alma-espírito-mente, é de bom alento, neste trabalho, deixarmos às margens do silêncio, tanto o magnetismo abissal da psicanalise, quanto o lirismo mágico da poesia: a primeira, para ser vivenciada no seu aspecto anímico, como uma possível extensão do complemento; a outra, para ser sentida na sua latência espiritual, como o resultado psíquico e imaterial do homem, limitando-nos apenas a entendê-las, se possível, entre a luz e a sombra.
Este livro “Psicanalise e artifício poético”, de feição gráfica de fino requinte, graças, também, às ilustrações mágicas da artista Regina Borba, timbra a sexta criação poética da psicanalista e poetisa Tereza Braúna Moreira Lima, que assim, mais uma vez, se achega aos umbrais do nosso Panteon.
Vê-se em seus poemas, de logo, a unidade psíquico-poética a latejar em seu-ser e sua desesperada luta para separar o tecido do ser-íntimo do tecido do ser-lírico, quando canta ao “Inconsciente”: “Há um debrum tecido / na fusão de mim com a vida / ou eu a unidade derretida / parte da vasta memória / que envolve o mundo a história / desarmonia quase morna / vinda, não sei bem ao certo / para advir sujeito”.
Tereza, como se numa rapsódia, impele-nos ao ritmo e nos encanta com esta belíssima Pulsão de recorte sumamente moderno, a jogar no sonho ideias preconcebidas de uma visão de vestido, de sarja talvez, no corpo ou nalgum cabido de guarda-fato, a misturar-se num tempo onde o gilvaz marcadamente se faz de verbo: “Essa veste que me cabe / em orifícios revestida / cata o instante do antes / onde agora é vida / perfurada em gozo / tatuada na linguagem / inscreve-se em corpo letrado / fazendo traço após traço”.
Aleatoriamente me deparo com o poema “Repetição”, na parte dedicada aos sobrevoos em Freud e Lacan: se o gênio de Lacan concebe a “repetição” como uma rememoração na cadeia de significantes, o de Freud, coloca essa mesma função simbólica de maneira poética, a exemplificar que “uma criança pequena ao ver a mãe partir, toma para si um carretel como objeto de substituição à mãe, com o qual inventa uma brincadeira em que faz o carretel ir embora e depois voltar”; a motivar Tereza Braúna, no aprumo das rédeas de sua consciência poemática, a nos dizer: “Há um tempo maldito / no sótão de cada um / esgueirando-se em frestas / querendo ressuscitar / há um feixe de momentos prensados / querendo se libertar! / Há dias feito noite / em constante agonia / tentando acordar! / E no silêncio do martírio / o segredo do mistério / revela-se em letras / vestidas de verso”.
No poema “Demanda”, de curto fôlego, mas de extensa força semântica, a poetisa Tereza Braúna Moreira Lima esbanja técnica no bem dizer. Ouçamo-lo: “No céu da boca / a língua me cavalga / demando o quê? quem? / Mais que isso [...] mais além / como onda em fuga / no reborde da maré / anseio teu abraço de enseada”.
Ao visualizar uma figura de nariz vermelho, sapatos grandes e roupas coloridas, muitos podem acreditar que estão diante de um palhaço. A psicanalise diz que o chiste do nosso palhaço elucida a estrutura do inconsciente, e o seu humor possui a capacidade de rejeitar a realidade e o princípio do prazer. Conheci vários palhaços de circos e fiz amizade com muitos deles; alguns, proprietários dos coliseus de espetáculos; outros, visivelmente diferentes daquele ator visto no picadeiro, porque, aqui de fora, eram ou são inimaginavelmente tristes. É sabido, sinceramente, que, à luz da ciência, eles escondem tantas coisas, além do grande coração que os dota de figuras humanas excepcionais. E os domadores circenses? Esses, dizem ser a “herança de nossa ancestralidade bestial”, a evocarem fantasias obsessivas no domínio da angústia, cuja ameaça de morte está sempre escondida entre os espectadores... Não sei! Mas Tereza Braúna Moreira Lima nos clareia a alma e as dúvidas, no poema “Recalque”: “Dobras [...] dobraduras [...] duras dobras / eis-nos estranhamente domesticados plateia e picadeiro / palhaços que riem chorando / feras adestradas / escondem garras e dentes / diante da fúria do mundo / no limiar do açoite!”
“Quando nasci, minha morte nasceu comigo”, digo em um poema meu, sem medo de festejar com ela o nosso aniversário. Haja gozo no festival de todas as vidas. Dizem que também os há na morte. Há vinho e flores em ambos os lanços, sabemos nós, e placentas, e arrepios e vísceras e ressurreição. Escutemos Tereza a nos dizer melhor, no poema “Gozo”: “No bojo de tudo há o verme / que antecipa a putrefação / na crosta encarnada há o verbo / que prevê a ressurreição entre eles o fruto da vida / se atira ao gozo descabido / e um arrepio cortante / invade as vísceras”.
O poeta mesmo sendo um fingidor, como o quer Fernando Pessoa, a todo tempo está prestes de ser mastigado por terríveis mandíbulas, porque é ele, o poeta, que dá pão à palavra e vinho à alma, é ele, o poeta, que tira o sentido da dor para sofrê-la... E Tereza Moreira Lima o canta no poema “Letra”, ouçamo-lo: “O que move um poeta / na eterna fome indigesta / perseguir o desejo dessa falta a ser? / O que de maldito ecoa / no porão dos aflitos / e pela boca desdita / deita na letra o dizer? / Assim vai [...] reeditando a vida / em frase feita poema / tecendo com o pó dos seus ossos”.
É ele, o poeta que encarna o maior ator do mundo, é ele a essência de todos os personagens, é ele que, com a lira ao peito, entoa todos os cantares e rege todas as tragédias, o que fez o estro do poeta Mário de Andrade, ao Esbofetear a Máscara do Tempo, desabafar-se tristemente no divã de um psicanalista após uma conferência: “Desconfio do meu passado... já não reconheço os meus fantasmas... eles não são mais meus companheiros!”
* Fernando Braga, in “Conversas Vadias”, antologia de textos do autor.