A última vez que a vimos foi naquele dia 8 de fevereiro deste ano quando ela, já à noite, deixava a nossa casa para fazer o caminho de regresso a sua residência na Rua Carvalho Branco nº 196. Todos os dias, ela fazia este caminho. Há mais de 30 anos, ela repetia esta sua caminhada. Antes, quando estava na companhia da mestra inesquecível Zoe Cerveira. Depois, continuou com a Nadir Nascimento Moraes.
Era uma complementação da família. Nela, a dedicação, a amizade, a companheira de todas as horas e de todos os momentos. Estava nas nossas alegrias e nas nossas tristezas. Uma vida na vida de todos nós. Era a costureira da família. Um dia todo em nossa casa. E só à noite, agora, depois das novelas, é que regressava. Uma expressão de amor em cuidados, em companheirismo, em contribuição, participando de tudo, interferindo em tudo, auxiliando. Olhando a casa. Vigiando a casa. Sempre assim.
Mas, naquele dia 8, não pôde ficar mais, demorar mais, para assistir ao “Homem Proibido”, à “Legião dos Esquecidos”. Não. E tudo parecia bem. Mas, de momento, já à tardinha, queixou-se de que estava sentindo dores no quarto. Sim, não estava sentindo-se bem. E, mais cedo, resolveu ir para a sua casa onde morava com seus parentes, seus familiares. E lá estava os seus sobrinhos, suas crianças, sua vida na comunhão da família. E saiu. Mas, antes, tudo, se fez para que fosse de carro. Não custava nada se chamar um automóvel. Mas, com ela, a resistência. “Não era preciso. Não era nada de grave”. E saiu. Nós não a víamos mais.
A doença não mais a deixou voltar para a sua varanda antiga vestida de Ontem, do Passado. Não mais estaria olhando os candelabros, preocupando-se com a Zoezinha. Não mais estaria trabalhando na sua máquina de costura. Não. Não mais estaria a nossa mesa, na conversa da família, na pilhéria, na alegria dos risos. Nos momentos de inquietações, de tristezas. Não mais voltaria para continuar na vida de todos nós. Não mais.
Da sua resistência, foi para um leito do Hospital Geral. Agravara-se o seu estado de saúde. Com ela, os cuidados médicos. Com ela, a presença da família, dos amigos, dos parentes. Mas, com ela, a pertinaz doença. E a dona Arcângela, seu nome de batismo, como nós a chamávamos, submeteu-se a duas operações. Foi necessária a intervenção cirúrgica. Complicações. Mas, com ela, a reação. Reagia sempre. Havia, com ela, um estado físico admirável. Mas a doença começou a devastação. O mal progredia. Quatro meses no Hospital Geral. Mas, contra ela, a ronda desta fatalidade – a morte. Esse diagnóstico plantou-se na vigília das nossas preocupações. Um estado de espírito permanente. Mas havia, sempre há, o lenitivo da esperança. Sim, poderia haver o milagre da recuperação. Mas o milagre não veio. D. Arcângela piorava sempre. Suas resistências cediam. Mas, com ela, sempre um estalo de vida, um pouco de melhora.
Sim, quatro meses no hospital. Depois, veio para casa. Estava no seu lar. E, junto dela, sempre a assistência da nossa família. A dor de Nadir, da Zezé. De todos nós que a tínhamos sempre na vida de todos nós. Mas a doença continuava. Insistia. Quebrava-lhe todas as resistências físicas. A inchação alastrando-se, dominando totalmente o organismo. Sim, dona Arcângela se aproximava do fim. E nós não a fomos ver um dia sequer. Nem no hospital e nem na sua residência. De longe, acompanhávamos o desenvolvimento do quadro clínico da grande amiga da família. Sabíamos que estávamos, talvez, mais Presente. Estávamos no sofrimento. No silêncio de nós, a marca da nossa dor em pedaço. Em nós, a sua lembrança. E sentíamos a sua ausência, a longa ausência. Na varanda da casa antiga, vestida de azulejos, não mais a tivemos sentada na sua cadeira “vivendo” as cenas das novelas, emocionando-se, sentindo os dramas, registrando suas impressões íntimas. Não mais a tivemos na mesa-redonda das refeições. Não mais na sua máquina de costura. Sim, sentíamos isto, sentimos isto.
Mas dona Arcângela ainda suportou mais dois meses e dias. E, na terça-feira, p. passada, às 5 horas da tarde, ela veio a falecer. Seu coração deixou de funcionar. De bater as horas da vida. Silenciou. Seus olhos se fecharam para a vida. A vida que, para ela, era a melhor maneira de viver. Sim, morreu dona Arcângela. E na quarta-feira, pela manhã, no seu caixão de pinho, polido, fazia a caminhada de volta. Não fomos ao Gavião. E nem lhe fomos falar à beira do túmulo. Não. Mas ficamos no silêncio, o nosso silêncio. No nosso recolhimento espiritual. E, para ela, acreditamos, a melhor maneira de a sentirmos ainda na vida, nas nossas lembranças e recordações. E já há, na noite, uma iluminação a mais no firmamento.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 5 de setembro de 1969 (sexta-feira).