A invocação da energia dos orixás, uma cerimônia chamada de Xirê, em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro, na Cinelândia, abriu caminho para uma noite de discussão sobre o racismo e a intolerância religiosa e em defesa da cultura africana.
Ao som dos atabaques, integrantes de terreiros do Rio dançaram em homenagem a todos os orixás, observados por quem passava na praça e era atraído pela cerimônia.
No alto da escadaria, sentada em uma cadeira, dona Rosália Oliveira dos Santos, a mãe Rosinha de Odé, com seus 92 anos de vida e 62 anos de iniciação no candomblé, acompanhava tudo.
A religião tem papel importante no dia a dia dela. “Adoro e vou morrer nessa”, contou, antes da cerimônia, em entrevista à Agência Brasil, a baiana que só entrou para o candomblé depois de deixar Salvador e se mudar para o Rio.
Mãe Rosinha de Odé, tem 13 filhos biológicos, mas não faz conta de quantos são os seus filhos de santo. O número é muito grande. Quem já viu tantas coisas na vida não consegue entender porque não há respeito para a sua religião. Tem medo da intolerância e de atos violentos nos terreiros e contra seus companheiros de fé.
“Isso é abuso. Desfazer das coisas que Deus determina. Como pode queimar, querer jogar fora, arrebentar tudo, fazer um bocado de bagunça. Se nós estamos lá é porque Deus nos trouxe aqui. Fico chateada e triste quando vejo certas coisas. Já passei tanta coisa no santo. Tenho medo que acabe”, disse, completando que ainda incorpora orixás. “Recebo o santo, sou de Oxossi. Oxossi com Yansã”.
Respeito
Ao lado dela, mãe Mara de Yemanjá, da Casa Ilê axé Egbé Omó Eja, do Parque Anchieta, zona norte do Rio, contou que o respeito é um conceito passado para os mais novos desde os seus ancestrais, por isso uma pessoa como a mãe Rosinha é tratada com reverência.
“Mãe Rosinha é uma das nossas Abás, uma das nossas anciãs, uma das joias do candomblé, porque é uma história viva do candomblé, que nós ainda temos oportunidade de lidar com ela, usufruir do saber dela, de estar com ela, de recebermos dela o axé, a vivência dela nesses anos todos. Por isso, ela é uma pessoa respeitada por todos nós. O candomblé tem um sentido hierárquico e ela, como uma das pessoas mais velhas, é digna de todo nosso respeito e da nossa reverência. Mãe Rosinha é iniciada de Oxóssi, então, a presença de mãe Rosinha entre nós é a presença do orixá Oxóssi entre nós”, apontou.
Racismo é condenado
Mãe Mara também defendeu a cultura africana e lembrou que o Brasil não deveria ter racismo porque tem uma forte presença de negros desde a sua origem.
“Nós não podemos mais admitir que as nossas casas sejam vilipendiadas, não podemos mais ser desonrados, porque fazem da nossa população uma população marginal e nós não somos. Nós somos força de trabalho e força de saber. A maior construção nossa é a história da nossa ancestralidade. Tudo isso que pisamos e tudo que temos foi através de nossos ancestrais. Temos que honrar isso e fazer com que a sociedade entenda que somos parte dela. Não é favor nenhum nos aceitar. Estamos aqui porque aqui é nosso lugar. O Brasil é negro. Não existe branco puro no Brasil”, apontou.
Lavagem
Após o Xirê, mães e filhas de santo fizeram a lavagem da escadaria da Câmara Municipal. Depois, todos seguiram para o plenário e começarem o debate público sobre Racismo Religioso e Cultural, proposto pelo vereador Reimont (PT), após pedido do Movimento Não Mexa na Minha Ancestralidade.
Em sua página no Facebook, o movimento informa que é uma “comunidade voltada para a luta contra o desmonte das religiões de matrizes africanas e manifestações culturais que delas se originaram, assim como pela garantia de direitos ao povo preto”.
O coordenador-geral do Movimento Não Mexa na Minha Ancestralidade, João Paulo de Xangô, lembrou que as casas de candomblé têm enfrentado dificuldades com a liberação, pela Prefeitura do Rio, de alvarás temporários para manifestações culturais como rodas de samba e de capoeira e os definitivos para os templos religiosos de matriz africana, que estejam localizados em áreas residenciais ou em fundos de quintais de imóveis.
Segundo João Paulo, a maioria dos terreiros está em regiões deste tipo, o que representa uma dificuldade para as casas, com exceção dos templos ligados à Federação de Umbanda e Candomblé, que têm as permissões para funcionar.
“Como se vai falar que uma fé não pode funcionar? Que um templo religioso não pode funcionar? É muito complicado. A fé envolve muito o seu espírito, a sua essência, principalmente, o candomblé que fala de uma questão ancestral”, afirmou.
O vereador Reimont, presidente da Comissão de Cultura da Câmara Municipal, disse que atendeu o pedido do Movimento Não Mexa na Minha Ancestralidade porque era preciso discutir a preservação dessa cultura e os casos de ataques a integrantes de religiões de matriz africana.
Apoio ao debate
O deputado estadual Carlos Minc (PSB), presidente da Comissão contra o Racismo e a Intolerância Religiosa da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) que, também, estava presente. Ele apoia o debate e disse que vai encaminhar o resultado do encontro para discussão dos seus colegas na casa. “Vamos levar [o resultado] para a Assembleia Legislativa e para o governo do Estado, porque as mesmas questões que existem na cidade existem no Estado e as linhas que esse debate avançar com prioridade serão também abraçadas pela Assembleia e encaminhadas não só para o governo estadual, como para o Ministério Público Estadual”, disse.
Mãe Marli de Xangô estava no grupo com integrantes de religião de matriz africana, do samba e da capoeira. Ela disse que não é “muito fã” de política, mas destacou que, diante das dificuldades que a cultura vem enfrentando atualmente com casos de violência e intolerância, é bom que o tema seja discutido pelos parlamentares.
“É o caminho para a gente conseguir algum objetivo. É um povo tão sofrido e corremos risco, hoje em dia, de acabar com a nossa fé. Acho que está sendo superlegal ter o debate e dou meu apoio”, afirmou.
(Fonte: Agência Brasil)