Estamos pensando nele. Pensando na ocorrência brutal que o afastou da Vida. Que o suprimiu do convívio da família, da sua íntima alegria de viver, de existir. Nítidas ainda aqueles dias em que o tivemos no seu leito de agonia. A morte pregada no seu corpo, consumindo-lhe a resistência. Ele na inconsciência, respiração difícil, ofegante, num esforço, assim parecia, querendo libertar-se do aprisionamento, querendo reencontrar-se, viver novamente, retomar a caminhada, recomeçar tudo de novo. Querendo fugir, realizar diante do Pai em desespero, da mãe aflita, dos parentes angustiados, o milagre da ressurreição.
Mas qual. No seu leito de sofrimento, na imobilidade total dele, apenas se ouviam as batidas do coração, um sopro de Vida. Vida em estágios de desfalecimento. Tudo o mais na inércia, toda uma articulação de ossos e de nervos no abandono de si mesmo, dominada por uma resistência passiva numa mensagem de aniquilamento reduzido a silêncio, um silêncio que se prolongaria para sempre.
Temo-lo, ainda assim, diante dos olhos. Mas também o temos antes do trágico. Olhamo-lo na Vida, sua vida, garoto-estudante da cidade. Vimo-lo pequeno ainda acomodado na inocência, na pureza da sua meninice, uma esperança rebentando-se no crescimento das idades. Uma unidade palpitante de vida, de existência na comunhão espiritual dos sonhos, estes que têm, em síntese, a virtude de todas as virtudes: as do corpo e as da alma. Crescendo, despertando, nele, o amadurecimento do físico, transformação da criança para o realismo do garoto-homem.
E, já agora, o tínhamos com outro comportamento, cursando o Ginásio. Já agora, na agressividade petulante dos seus próprios pensamentos forçando o divórcio com a paternidade, abrindo brechas perigosas nos preceitos e conceitos orientadores da vida social em família, em companheirismo e quebrando a resistência das vigílias sentimentais e educacionais de seus pais. Já agora, um homenzinho no aproveitamento dos seus 18 anos.
Com ele, a rebeldia dos seus impulsos. Estava na vida de estudante, vivendo um pouco de si mesmo, atropelando os sonhos, seus sonhos vestidos, agora, deste concretismo que estabelece normas outras afastadas da rigorosidade duma pressão exterior. Vivia um pouco de si mesmo e conquistava, a seu modo, a sua maneira, o seu estado-vida!
Estava assim, JÚLIO CÉSAR, o garoto que foi arrancado da Vida, quando tudo, para ele, era vida.
Estamos pensando nele com intensidade. Um dos nossos sobrinhos, mas ele rompendo com o ritual do parentesco gritava para nós quando nos via: “Seu Paulo!”
E a seguir, galhofeiro:
– Como é que vai esta velhice?
No seu rosto, surgia a alegria de um riso marcando a intimidade num envolvimento de maduração do espírito.
Estava assim, na Vida, alegre, esbanjador dos seus rompantes de garoto-homem. Vendendo arrogância aos adultos da sua intimidade. Era assim JÚLIO CÉSAR.
Dele, todas essas lembranças vivas enchendo a casa das nossas lembranças. Mas o que ainda domina, o que ainda existe, é a sua presença no leito do seu sofrimento. Seu sofrimento em silêncio, seu sofrimento em nós, seu sofrimento em todos que fizeram o velório da sua DOR em silêncio.
Depois, o resto: seu corpo naquele caixão de madeira, levado para o Gavião. O Gavião da morte, do sono eterno, indefinido.
Mas lá na esquina, no asfalto, sempre indelével, a marca da brutalidade que o vitimou. Na noite, aquele grito de pavor, anunciando a sua caminhada para a morte. Mas... Estamos pensando nele com amor e com saudade. Mas, se soubéssemos rezar, seria rezando que pensaríamos nele.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 25 de novembro de 1967 (domingo);