Na década de 1980, o Instituto Lusíadas, em que trabalhei com o diretor Paulo Peroba, levou a Fortaleza para palestras e mesas-redondas o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda, famoso pelo dicionário que lhe dera reconhecimento e importância no Brasil inteiro. Culto, atencioso, discreto, não parecia o homem desorganizado, caótico, indiferente a contratos estabelecidos e a cumprimento de prazos, que Cezar Motta revela em Por trás das palavras (Rio de Janeiro: Máquina de Livros, 2020). O subtítulo é promissor: “As intrigas e disputas que marcaram a criação do Dicionário Aurélio, o maior fenômeno do mercado editorial brasileiro”.
Muito mais que a publicação de obras extensas – como os 17 volumes de A comédia humana de Balzac, os sete de Em busca do tempo perdido de Proust –, o lançamento de um dicionário é gigantesco desafio a quem se proponha fazê-lo, pelos recursos humanos e materiais envolvidos e pelo tempo que se leva para a elaboração de milhares de verbetes. Hoje, com a tecnologia de informações que permite o acesso a dados em poucos segundos, o trabalho dos dicionaristas ainda surpreende pelo esforço; faça-se ideia quando só havia a máquina de escrever, em que se datilografava ficha por ficha, depois revisadas e emendadas à mão, reunidas em caixas sujeitas a desordens e extravios. Tarefa para profissionais com método, organização e disciplina, o que nunca fora o caso do professor Aurélio Buarque de Holanda. Apaixonado pela arqueologia filológica, pela investigação linguística, pela pesquisa semântica, era-lhe difícil compreender a obra intelectual como peça de algo muito maior, que ia do cronograma de despesas aos equipamentos requeridos pela produção gráfica. Assim, o projeto de um grande, moderno e exaustivo dicionário brasileiro da língua portuguesa quase vira sonho que se frustra para sempre, não houvesse na vida do quixotesco Aurélio Buarque de Holanda um escudeiro fiel chamado Joaquim Campelo Marques.
Em 1950, o jovem Campelo troca a provinciana São Luís do Maranhão pelo Rio de Janeiro, onde ganhará a vida como representante comercial, publicitário, tradutor, editor mas, sobretudo, como jornalista, em O Cruzeiro e, depois, no Jornal do Brasil. Quando a maioria dos colegas faltava ao serviço sob a desculpa de que não passava bem, certa vez o maranhense acordou em uma esplêndida manhã de sol a pedir praia, telefonou para o chefe no JB e disse que não iria trabalhar porque se sentia bem demais... Ao saber de muita gente demitida nas redações cariocas, imaginou um bicho voador em rasantes para desempregar companheiros. Batizou-o e escreveu-lhe a definição, à maneira dos dicionaristas:
Passaralho s.m. Bras. Designação popular e geral da ave caralhiforme, faloide, família dos enrabídeos (...). Bico penirrostro, de avultadas proporções, que lhe confere características específicas (...). No Brasil, também é conhecido por muitos sinônimos, vários deles chulos. Até hoje, discutem os filólogos e etimologistas a origem do vocábulo (...). A verdade é que quantos o tenham sentido cegam, perdem o siso e ficam incapazes de definir o fenômeno. As reproduções que existem são baseadas em retratos falados, e, por isso, destituídas de validade científica.
Aluno bolsista da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, Campelo conhece o professor Aurélio, que logo o encanta pela cultura vasta e pelo amor à língua portuguesa, a quem passou a ajudar, gratuitamente, na correção de provas do Colégio Pedro II. Melhor assessor não poderia haver, segundo Cezar Motta:
Aplicado, detalhista, estoico, capaz de trabalhos solitários em recintos fechados por várias horas, desconfiado, casmurro, alto para os padrões da época, magro, ascético, com um rosto moreno encovado em que se aninhavam fartos bigodes em forma de trapézio, às vezes acompanhados de cavanhaque, Campelo era o auxiliar ideal. Principalmente porque trabalhava de graça. Raramente se irritava ou perdia o controle; em situações polêmicas, lançava mão do sarcasmo e ironia, suas armas. Sempre cultivou um senso de humor peculiar, que soaria agressivo a quem não o conhecesse. Chegava ao apartamento do mestre, no Edifício Duque de Caxias, na Praia de Botafogo 48, no quarto andar, por volta das 8h, e trabalhava até o almoço – pegava em O Cruzeiro às 16h. Raramente, porém, era convidado para almoçar.
Depois, braço direito do filólogo no grande “Projeto Dicionário”, o assistente batalhou por recursos financeiros para a montagem do escritório e o pagamento da equipe: ele, Marina Baird Ferreira (esposa de Aurélio), Elza Tavares, Margarida dos Anjos e Stella Moutinho, auxiliados por Elisabeth Dodsworth e Giovani Mafra. Prazos de entrega descumpridos e rompimento de contratos por pouco não se reclamam na Justiça, até que Campelo consegue o apoio decisivo da Editora Nova Fronteira, de Carlos Lacerda. Finalmente, ocorre o quase milagre: em 1975, lança-se a primeira edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa, assinado por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, “da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filologia”. À noite de autógrafos, em livraria de Ipanema, Campelo não comparece, preso à redação do Jornal do Brasil até depois da meia-noite. História que me faz lembrar a de outro maranhense, o cronista Humberto de Campos, a trabalhar em um armazém de secos e molhados quando, em 31 de dezembro de 1900, fogos transformaram em dia a noite do Rio de Janeiro: era o século que passava...
Na sessão com que a Academia Brasileira de Letras comemorou o lançamento do dicionário, Aurélio só agradeceu, nominalmente, a um auxiliar, a própria mulher. Prova de que não rezava pela cartilha de Santo Ambrósio de Milão, para quem, nas tábuas da lei, deveria constar um décimo primeiro mandamento: “Sê grato aos que te ajudam”.
A obra alcançou êxito jamais visto no mercado editorial brasileiro: até 1986, venderia três vezes mais que todos os romances de Jorge Amado; três anos depois, a venda de mais de seis milhões de exemplares só perdia para as edições reunidas da Bíblia; em 2003, o total já chegava a 15 milhões, nos formatos impresso e eletrônico.
Com a previsão de que o Minidicionário Aurélio, lançado em 1977, venderia um milhão de exemplares por ano, o autor e a mulher alegaram, para surpresa de todos, ser a versão compacta um produto diferente do original, com o que não teriam de pagar nada a mais ninguém. Campelo, Elza e Margarida foram à Justiça para cobrar royalties sobre mais de 360 mil exemplares. Em depoimento espantoso, disse o filólogo ter posto no dicionário o nome de Campelo por “mera liberalidade” dele, Aurélio, sem que houvesse, pois, nenhum direito a reclamar, principalmente quanto ao Minidicionário, um produto novo. Assim, quebrava-se, para sempre, uma relação de amizade e parceria por mais de três décadas. “É o fruto que colhi pelos muitos anos em que trabalhei de graça...”, deve ter sentido o ajudante, ao escrever-lhe, conta Cezar Motta, “uma violentíssima carta de sete laudas datilografadas em que o acusava de traição, chamava-o de ‘mau-caráter’ e ‘indigno’, referindo-se a si próprio na terceira pessoa”:
Nós sempre o respeitamos, mas o senhor não nos respeitou. E, por isso, perdeu o respeito. E, além do respeito, a dignidade, ao depor como depôs num caso em que seus amigos e assistentes fomos agredidos e quando não lhe custava dizer a verdade. Só a verdade. Faltou-lhe coragem para declarar ter lesado o Campelo por cerca de dois anos e mais de um milhão de exemplares do minidicionário e reconhecer que dera um mau passo (...) À maneira das Catilinárias, não nomearei aquele que jamais trastejou na trajetória que leal e abertamente se traçou. Assim como também não recordarei que o dicionário foi prometido para dentro de um ano, ou seja, em 1970 – mas que só ficou pronto, na marra, arrancado a fórceps, em 1975. Deverei memorar quem bancou isso, mansamente doido?
Para o jornalista Janio de Freitas, “Campelo é o responsável efetivo, factual, pela existência do Dicionário Aurélio”. Com o que concorda a escritora Nélida Piñon: “Foram mais de 20 anos de devoção, o trabalho de uma vida. Sem Joaquim Campelo e Elza Tavares não haveria o Dicionário Aurélio”. Com toda a mágoa, foi o ex-assessor suficientemente elegante para representar o amigo presidente José Sarney nos funerais de Aurélio, em 1989. Não bastasse a tristeza que lhe ficou da briga, Campelo ainda foi derrotado em todas as demandas na Justiça, até a manifestação última do Supremo Tribunal Federal.
Resta-lhe a consciência de saber-se vítima de quem lhe negou o reconhecimento, a gratidão e a paga a que tinha direito. Como na célebre história de outro maranhense, Artur Azevedo, imagine-se uma criança a perguntar:
— Mamãe, o que é “plebiscito”?
— Plebiscito... plebiscito...
Disfarça o constrangimento por desconhecer o significado. Vai à estante, pega o Dicionário Aurélio e aproveita para fazer justiça ao verdadeiro responsável pela obra:
— Eu sei, mas não vou dizer... É para isso que serve o dicionário. Tome: abra o Campelo e procure!
* Texto de Edmílson Caminha