Ela sempre vem. Ninguém a pode evitar. Às vezes, surge com a brutalidade das surpresas que afastam da gente, de momento, esta douda alegria de viver. Chega de chofre. Afasta a VIDA em instantes, em momentos. E há um “clássico” diagnóstico médico, confuso embora, perturbador, mas apresenta uma justificativa: – “MAL SÚBITO”.
E não há “junta médica” que esclareça, devidamente, a CAUSA MORTIS. Há, apenas, uma “trapalhada de indicações” que nada diz de certo, de positivo. E, diante de todos, apenas o inevitável – a MORTE. A vida escapole da gente pelos dedos, pelos poros, pelos olhos que ficam parados, olhando ao longe, muito ao longe, o que eles não estão mais vendo. O coração para neste instante. Já não há mais vida. Há um corpo imóvel. Um corpo sem vida.
É assim às vezes, muitas vezes. Doutras, ela vem de manso, vagarosa, encosta-se na gente e vai se apossando da gente aos poucos. Vem vestida de DOENÇA. Tem porções de identificações. Uma infinidade! O fato é que chega e vai atuando no organismo. Do primeiro contato passa para o estado permanente. E trava-se a luta, a batalha. Diante da gente, está o invencível adversário: a MORTE.
Uma luta terrível. Dura um tempo, uma eternidade! O organismo reage, investe, persiste, domina às vezes. Entretanto, todo esforço é inútil. Ela insiste sempre. E acaba vencendo! Uma variedade de diagnósticos aponta uma justificativa. “Foi isto ou foi aquilo!” O fato é que todos os recursos médicos esbarram ali, acabam ali, paralisam ali.
Tudo é uma questão de tempo. De momentos. O fato é que o corpo cansa. Gastam-se as últimas reservas. Uma realidade fica diante de todos: a MORTE. Uma vida que deixou de viver. Um coração que deixou de pulsar. É assim, terrivelmente assim. É a fatalidade da qual ninguém escapa.
Um dia, numa manhã de sol, de claridade, de luz ou numa noite iluminada de estrelas lá em cima, pregadas no AZUL, ou num dia de chuva, de água caindo, ou numa noite feia, medonha, mais escura, há sempre o acontecimento trágico. Há sempre um lar que se enluta, corações que se vestem de tristezas, de emoções. Olhos que ficam molhados de lágrimas. Sempre assim. E não sabemos onde lemos isto: “No momento em que nascemos, nós nos encaminhamos para o túmulo, para o caminho de volta”. É isto mesmo.
Ary Barroso, há meses que vinha lutando, querendo continuar, querendo viver, viver para a VIDA, para a família, para os filhos, para os netos, para o Brasil, para as suas composições, para seus dias felizes. Não se entregou de todo. Ia resistindo aos primeiros impactos. Deixou a residência e recolheu-se numa Casa de Saúde. E, junto dele, acabando com ele, consumindo as energias, o fortalecimento físico, ela, a MORTE. Com ele apenas, nesta luta, a grandiosidade da sua resistência. Não se deixou dominar de todo. O organismo reagia, teimava em vencer, em se afastar da FATALIDADE. Todos os recursos médicos foram utilizados.
Em Ary Barroso, estava uma das mais fortes expressões da música brasileira. O poeta e o compositor do Brasil, da sua geografia sentimental, romântica. Estava a alma do povo na exaltação dos seus costumes e das suas tradições. Mas, tudo isto, para a MORTE é um NADA. Uma “coisa alguma”. Ela estava cobrando caro o seu “imposto de consumo”!
Chegará a HORA ILUMINADA da sua verdadeira IMORTALIDADE. Todo o Brasil olhando para ele, acompanhando-o na Casa de Saúde. A MORTE rondava-lhe a cabeceira. Talvez, ele a tivesse visto tantas vezes e, talvez, sentisse, no seu mundo interior, a brutalidade que dela viria. Alguns dias vivendo assim, prisioneiro da Casa de Saúde. Vivendo longe da VIDA, vivendo tão perto da MORTE! Muitos dias passando mal, muitas horas passando mal. Tranquilo estava esperando a hora que sempre chega. E já havia, cá fora, lágrimas nos olhos dos amigos, dos boêmios; prantos nos olhos da esposa, dos filhos. Uma inocência sentida, profundamente sentida, nos olhos dos netos. E o Brasil olhando para ele. Ubá, onde nascera, seu chão, de Minas, sentindo a grande ausência, olhando para ele.
Ary Barroso resistia. Conseguiu sair de várias crises. E parecia que voltaria a VIVER e continuar vivendo a prolongar a VIDA. Restabelecia-se aos poucos. Deu sua última entrevista. Conversou com a IMPRENSA. Fez blaque... Sorriu para VIDA. Iluminou-se de novos sonhos. Alegrou corações e afugentou tristezas. Mas não deixou a Casa de Saúde.
Havia necessidade de mais repouso. Ficara. Mas estava escrito: não voltaria mais para a alegria da VIDA. Aquela entrevista fora a sua última página. E Ary piorou. O corpo cedeu. As energias cederam. A vida se lhe escapava de todo. E domingo, domingo de Carnaval, veio a notícia fatal: “Morreu Ary Barroso”.
No começo de um novo dia, morria o grande compositor mineiro. Morria o magistral autor de AQUARELAS DO BRASIL, o hino da alma sentimental do povo. A poesia das emoções, dos sonhos iluminados! A página VIVA do SAMBA brasileiro. Alma e corpo do Brasil. Vibração de um poema num murmúrio de prece!
Bem isto. E morreu quando o SAMBA estava nas ruas, nas praças da “Cidade Maravilhosa”, nas ruas e praças do Brasil. Ouviu a batucada de longe, marcando o ritmo da melodia. Fechava os olhos para a VIDA, abria os olhos para a glorificação de outra VIDA.
Nós o conhecemos no Rio, na redação de “O JORNAL”, quando chefiava à secção de esportes do grande matutino carioca das ASSOCIADAS. Era um espírito lúcido. Uma inteligência privilegiada, um criador de sucessos, de “imortalidades”. Uma centelha, uma vibração constante. Uma alma inquieta. Um espírito em constantes realizações. Um companheiro. Um amigo.
Hoje, temo-lo na lembrança, na saudade. Temo-lo na evocação da sua imortal “Aquarela do Brasil”, do seu “Risque” e de tantas outras melodias que ficaram como marcos indeléveis da sua presença na TERRA. Nesta página, a nossa homenagem, a saudade que está no coração de todos os maranhenses.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 16 de fevereiro de 1964 (domingo).