Foi Erasmo Dias que mo apresentou. Estávamos à mesa. O menino acolheu-nos com a vibração da sua íntima alegria. E havia, na noite, a presença de nós na exaltação das coisas. Alguns instantes, ficamos na tagarelice. Diante de nós, a paisagem noturna da cidade. Entre nós, as divagações em ritmos acelerados.
E as lembranças vieram em bandos... Muitas ficaram na demora das reflexões. E não ficou ausente a saudade. Sentimos a ausência de tantas coisas que ficaram no passado, que ficaram no tempo... Erasmo relembrou amigos, fatos, ocorrências, o registro das piadas etc. Com Fernando Braga, a participação. Ouvia mais que falava. Depois, passou a aproveitar-se das oportunidades. Marcou sua presença com a boêmia de seu espírito. No menino, a fulguração da inteligência. E a poesia não se fez demorar nas declamações que encontravam, em Erasmo, o ponto alto das atenções. A poesia na noite, na alma dos poetas.
Foi assim que conheci Fernando Braga. E começamos a ser amigos. Com ele, as afirmativas de Erasmo Dias: o menino tem talento, tem valor... o menino vai longe. Sim, passamos a sentir Fernando Braga na intimidade. Uma afirmação. Um espírito lúcido, uma alma emotiva. Um poeta nato. Seus versos na identificação de si mesmo. Uma poesia sua. Seu Eu em tudo. Sua alma em todos. Não se fixou nas “escolinhas”. Uma poesia liberta do academismo das chamadas escolas literárias.
E, com o poeta, o amigo, o homem de bem, uma parcela impressionante de solidariedade humana. Simples. Perdulário de talento. Poesia na abundância dum lirismo que é magia, que é encanto, que é iluminação de sol na vibração perene dos astros. Poesia em tudo que é belo, que é sombra, que é silêncio, que é dia e que é noite. Tem ternura. Mas também encrespações da alma em desespero, da alma revoltada contra as injustiças, contra o domínio da escravização humilhante. Aí, há a poesia social, a poesia que é uma mensagem de compreensão para os homens, que alerta a desordem, que adverte o clamor contra os fabricantes do ódio e da prepotência. Sim, o pequeno “David, por aqui, jamais voltará. / Se foi para outras terras / em que não existem as decepções do capitalismo, / do suborno, da fraude, do misticismo, / do império de frustrações de riqueza. / Se foi para muito longe, / onde não há o subjugo horrendo e humilhante / da plebe pela nobreza”.
É a poesia socialista. Humana, retratando um quadro social existente. Uma cantiga do menino frustrado, do menino no abandono, no mundo das suas ilusões, decepcionado, fugindo do esmagamento. É a poesia que se eterniza.
Mas vamos encontrar o poeta em “Noturno”, numa outra expressão de sentimento. Aí, a poesia num crescente de simbolismo da ideia em confeito, mas sempre aquele pensamento, aquela sua dor íntima no transbordamento das suas inquietações: “Eu vi o tempo descer / pela ladeira de minha rua; / eu vi o remorso dos homens / estampado nos muros sem rebocos e vibrações; / eu vi a noite desmanchar-se em zoopermas / na inquietude das multidões vencidas; / eu vi um choro em cada esquina / e uma dor nívea em cada rosto”.
É assim a poesia de Fernando Braga. Tem o amadurecimento das reflexões e uma mensagem de si, da sua alma na tormenta do sorvedouro humano. É Fernando Braga no esbanjamento dos seus sentimentos, no atrito das suas íntimas revoltas. Seus poemas têm o batismo da dor na rebelião comovente contra as injustiças sociais. Mas também tem amor, mistura de afeto, lirismo num envolvimento de prece: “Hoje, mamãe, / eu te queria presentear um poema / Procurei com gestos ávidos / e inocentes de criança / um brinquedo de rima / que tivesse o colorido Glauco / que os teus olhos têm”.
Aí, está Fernando Braga. Erasmo Dias mo apresentou. E eu me curvo diante dele para a glorificação da minha velhice. E há mais luares nos meus cabelos. São as rimas dos meus versos numa homenagem ao poeta de “Silêncio Branco”.
* Paulo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 3 de janeiro de 1968 (quarta0feira).