Nascida em uma família liberal e que defendia a laicidade no Marrocos, país de maioria islâmica e leis conservadoras, a escritora Leila Slimani sentia-se no exílio, em sua própria casa, em relação ao mundo fora dela. Depois de mudar para a França, aos 17 anos, ela encontrou uma sociedade mais laica, mas ainda cheia de resistências ao multiculturalismo e preconceitos contra imigrantes. Francesa de origem marroquina, aos 36 anos, Leila considera-se pertencente à literatura.
"O exílio não é uma coisa geográfica, sentia-me exilada até no meu próprio país", afirmou a escritora em entrevista coletiva, nessa sexta-feira (27) durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde participou de uma das mesas de discussão. "O único lugar em que não me sinto exilada é na literatura. Este é o meu verdadeiro país. Quando era jovem e li livros de [Leon] Tolstói e Jorge Amado, por exemplo, senti que era a esse universo que eu pertencia".
A escritora critica certo saudosismo que existe entre os conservadores europeus, que sonham com a volta da França ou da Itália de outrora. "Eu não tenho nenhuma saudade dessa França e não lamento. Uma França em que as mulheres não tinham direito de votar, nem de abortar, em que os homossexuais eram considerados ilegais. Não vivo nessa nostalgia", disse ela.
"O multiculturalismo é uma enorme riqueza para nosso continente. Infelizmente, como vocês sabem, ele suscita muita oposição e muita violência por parte da direita", acrescentou.
Leila Slimani publicou recentemente, no Brasil, o livro “Canção de Ninar”, que rendeu a ela o Prêmio Goncourt, o mais importante da França. Na história, em que uma babá mata os dois filhos de seus patrões, Leila Slimani explora as diferenças sociais, culpas e relações de poder presentes nessa sociedade, sem julgamentos ou condescendências. Autora de sete livros, ela já escreveu sobre uma mulher casada e compulsiva por sexo, e sobre a vida sexual secreta de mulheres marroquinas.
Na história de “Canção de Ninar”, a babá transita entre a loucura e o desejo ilusório de alcançar a perfeição para pertencer a uma família burguesa. "Percebi, na qualidade de mulher e na qualidade de mãe, que eu só poderia ser realmente emancipada e livre quando tivesse aceitado o fato de ser imperfeita".
Para a escritora, a sociedade imputa muito mais culpa às mulheres que aos homens, especialmente no que diz respeito à maternidade. "Em uma situação dessas, em que estou em Paraty, até a minha própria mãe diz para mim que estou fazendo muita falta aos meus filhos. Se for o meu marido que viaja, eles dizem para ele: 'seus filhos devem fazer muita falta para você'".
Intimidade é política
Leila Slimani contou que sua experiência como jornalista, cobrindo a insatisfação da juventude nos países da Primavera Árabe, revelou uma falta enorme que esses jovens sentiam da intimidade, por terem suas vidas constantemente controladas pelas famílias e pela moral religiosa. Segundo ela, no Marrocos, apenas 0,1% das pessoas com menos de 28 anos moram em uma casa com um quarto só para elas. "Eu me dei conta de que essa questão da intimidade era, sim, uma questão política".
No caso das mulheres, a percepção da escritora nas viagens ao país de origem era de que seus corpos não pertenciam a elas, ainda que se falasse com mulheres diversas, casadas, prostitutas, lésbicas ou ateias. "Constatei que a primeira violência que você pode fazer com uma mulher é o silêncio, é dizer cale-se eu não quero ouvir o que você tem a dizer", disse ela, que se lembrou de uma jovem que contou a ela que queria ser escritora, mas tinha medo de perder as pessoas que amava. "Temos que lembrar sempre que, para muitas mulheres ao redor do mundo, ousar dizer e ousar contar histórias é perder as pessoas próximas".
Captura do leitor
A escritora disse também que o fato de ser jornalista influenciou na forma de seus textos e, também, na capacidade de observar os detalhes à volta, muito usados em sua literatura.
"A gente [jornalista] está sempre cortando o texto. Isso me ensinou que é preciso que o leitor seja imediatamente capturado pelo texto. Não se pode perder tempo para que isso aconteça".
“Francês não está em declínio”
Em outro ponto da entrevista coletiva, Leila Slimani discordou de uma repórter que perguntou como ela via o espaço da língua francesa tomado por outros idiomas como o inglês e o mandarim. A escritora respondeu que a língua francesa não está em declínio, porque é uma das mais estudadas e traduzidas, e está muito presente em países que terão grande crescimento populacional, especialmente no continente africano.
"Hoje em dia, existem 250 milhões de francófonos [aqueles que falam francês] no mundo. Em 2050, haverá 600 milhões", afirmou Leila, destacando que o francês é uma língua versátil e espalhada em todos os continentes, sendo, inclusive, mais estudada fora da França.
"A francofonia vai ficar cada vez mais forte à medida que a França não seja o seu centro", ressaltou Leila Slimani.
(Fonte: Agência Brasil)