Afastamo-nos hoje, como sempre o fazemos, do alinhavado que há nos comentários políticos. Deixamos de lado, neste domingo, homens e fatos da política nacional. E o fazemos com uma euforia muito nossa. E tomada esta determinação estamos olhando este domingo igualzinho aos outros, com as mesmas paisagens, o mesmo esbanjamento de LUZ, as mesmas sombras projetadas na “cara geral dos edifícios” como diria o inesquecível Augusto dos Anjos, o poeta maravilhoso, profundamente humano do “Eu e outras poesias”. Tudo tão bom nesta manhã de sol, de claridade, de cores lá fora, na “mataria em festa” do interior da Ilha, nas areias alvas das praias distantes, ensolaradas, na quietude de uma evocação que se perde ao longe, nas décadas dos séculos. Tudo tão encantador. Uma poesia que vem de toda a parte, da terra, do chão pisado por porções de pés, que vem do céu, do azul devassado pela penetração dos “pássaros metálicos”, que vem do Mar, das suas águas revoltas, barulhentas, impetuosas, em fúria, em mansidão, tranquilas, mas que, de momento, se precipita, se arremessa para frente e vai se arrastando lentamente, suavemente, com suas espumas brancas cariciar as areias das praias que sempre ficam na espera destas carícias de posse absoluta.
Tudo tão BOM neste domingo. A gente olhando a Ilha, a cidade que nos viu nascer e que nos viu crescer, somar as idades dos anos, que assistiu à juventude, à produção dos primeiros versos, dos meus escritos para jornais, para revistas, que agora, mais iluminada, assim nos parece, assiste a nossa velhice. Uma velhice encantadora, cheia de nós, de nossos sonhos, deste nosso realismo de viver a vida como ela tem sido para nós: luta, trabalho, conquistas, decepções, sofrimentos e desenganos. Tudo assim vivendo em nós, relembrando-se em nós, desfilando em nós, registrando emoções, revivendo-as, dando a nós sensações estranhas de recordar tudo, reviver tudo e , por um momento, sentir que bem poderíamos recomeçar tudo de novo. Tão agradável não seria isto: recomeçar tudo.
Mas estamos olhando a cidade, olhando nós mesmos, nós com os nossos erros, com as nossas virtudes, nossas lutas, nossas ambições, nossas exigências. Nós em tudo que fomos, que somos e que desejaríamos ser e que não nos foi possível SER. Tudo isto passando por nós deliciosamente, sem ofensas, sem mágoas, sem atritos íntimos. E tantas coisas ficaram no esquecimento, enterradas na areia muito mais alva do que as das praias, as areias da nossa meninice, nossa infância sem sonhos, sem realidade, vivida, assim nos parece, no desperdício de uma inocência pura, virginalmente pura. Tantas coisas não ficaram nas dobras destes anos vividos apenas com os olhos abertos, contemplativos, olhando sem olhar, sentindo sem sentir, sem reconhecer, sem identificar o nosso mundo material, este que tem de nossos pais a vigilância e de nossas mães os primeiros cuidados e as primeiras aflições. Tantas coisas deixadas aí que poderiam ter sido, arroladas para, agora, nada ficar tão mais distante da gente, de recordar tudo, sem perder nada. Tantas coisas...
Mas nós voltamos para as outras idades, as que nos vieram encontrar com os sentidos despertos, com a vida em nós, a vida nas primeiras preocupações, nos primeiros movimentos para pegar as coisas sacudidas no chão, levá-las à boca, mordê-las, numa demonstração de vida consciente, de vida já em luta, nos ensaios das primeiras tentativas de posse, de querer alguma coisa. E aí tem algo de grandioso, de sublimidade do espírito, festa eternal do coração. E nos deparamos com as outras idades, as mais amadurecidas, as mais refletidas, as mais compreensivas. E rememoramos a primeira escola, a primeira mestra, os primeiros contatos com os colegas, com as meninas, com os meninos. Tudo tão BOM, tão encantador, tudo tão feliz, tão cheio de nós, da nossa vida em caminho para outras vidas, para outras etapas, para outros sonhos, sonhos mais impetuosos, mais ousados, mais exigentes. Tudo assim, neste domingo, desfilando, passando pelo pensamento, pelas lembranças, passando devagar, de mansinho, sem afogadilhos, sem cansaços. Tudo assim, admiravelmente assim, fraternalmente assim.
E os anos passando, os anos e as idades, até que um dia aparece o primeiro cabelo branco, outros mais, mais outros, dezenas deles marcando o começo do envelhecer, do amadurecimento total que virá, agora sem mais demora. E a gente olhando para a gente e sentindo que poderá recomeçar tudo outra vez, engatinhar outra vez, ser criança outra vez. Uma vontade que não magoa, que não entristece, mas que dá a nós a medida exata do tempo. Do tempo gasto, perdido, irrecuperável. Agora, é ir para frente, caminhar para frente, pensando no caminho que está adiante, um caminho longo, interminável, desconhecido, mas que todos dizem que nos conduzirá para Deus, para Jesus, o Filho do Carpinteiro, o Deus Homem, que nos deu o exemplo de todos os fortalecimento morais e físicos, a lição do suportar, do resistir, para um dia, numa Manhã assim como esta, de Sol, de Luz, pensando no Mestre do Calvário, repetirmos a lição maravilhosa da Ressurreição, de voltarmos em espírito para a grandiosidade doutros mundos e sermos estrelas.
E estamos hoje, apenas sentimos isto, neste domingo, olhando a cidade e olhando para nós, para os nossos cabelos brancos...
* Pailo Nascimento Moraes. “A Volta do Boêmio” (inédito) – “Jornal do Dia”, 11 de outubrp de 1964 (domingo).