“Sonhei ser musa inspiradora de um poeta, de um pintor. Rimas, prosas e versos de um compositor”. Tais palavras foram escritas, em 1957, pela então professora paraense Ionete da Silveira Gama.
Hoje com 83 anos, a Dona Onete, como ficou conhecida, realizou os desejos que um dia escreveu em poesia: tornou-se inspiração para fãs e artistas da cultura e da música popular brasileiras.
Para celebrar a trajetória da cantora e compositora, o Itaú Cultural inaugurou a Ocupação Dona Onete, que fica em cartaz até 18 de junho.
O manuscrito que abre esta matéria, além de ter virado a música Sonho de adolescente, do álbum Banzeiro, de 2016, está entre os mais de 120 itens que compõem a mostra.
Dividida em quatro eixos temáticos, a exposição traz fotos, vídeos, músicas e manuscritos, originais e inéditos, além de depoimentos da artista, de seus amigos, parentes e parceiros musicais.
Para a curadora Andreia Schinasi, a exposição busca estar à altura das várias vertentes do trabalho da artista. “Dona Onete é muito singular, foi um desafio pensar como traduzi-la nesse espaço de 100m². A Dona Onete é sonoridade, é território, poesia, é muito além da música”, enfatiza.
Sobre o percurso proposto para a ocupação, Andreia explica que “a gente entra pelo território, para trazer toda a vertente desde o nascimento até o momento em que ela vai parar em Belém. Faz um mergulho profundo no Pará, depois versa sobre encantarias, religiosidades, uma coisa que é muito forte para ela, a contação de histórias, das lendas. E, depois, faz a brincadeira de um grande palco que é a consagração dela, e faz esse mergulho na obra e na sonoridade também, não só dela, mas também do Pará”, explica.
Quando questionada sobre o que acha de uma exposição sobre si mesma, Dona Onete repensa sua trajetória. “Eu estou muito feliz. Quando eu soube que o Itaú estava interessado na minha história, eu até pensei que eu não tinha história, mas eles acharam tanta coisa e foi fluindo e, hoje em dia, eu acho que tenho muita história pra contar”.
Militância e música
Dona Onete nasceu em 18 de março de 1939, em Cachoeira do Arari, município da Ilha de Marajó, interior do Estado do Pará. Mais tarde, mudou-se para Igarapé-Miri, município do Baixo Tocantins conhecido como a “capital mundial do açaí”. Foi lá que se tornou professora de história e estudos paraenses. A partir dos ensinamentos do educador Paulo Freire, militou em movimentos sindicais por melhores condições de ensino para estudantes e de trabalho para professores. Atuou também como secretária de Cultura, com foco em grupos ligados à cultura popular. Ainda em Igarapé-Miri, criou, em 1989, o grupo folclórico Canarana, no qual estreou com 12 canções autorais. Em meados de 1990, atuou no Coletivo Rádio Cipó.
Foi somente com a aposentadoria, aos 62 anos, e já morando em Belém, capital paraense, que Dona Onete conseguiu se dedicar inteiramente à música. Foi a partir daí que Ionete se tornou Dona Onete e ficou conhecida como “Rainha do Carimbó Chamegado”. O reconhecimento maior veio quando a artista participou do Festival Terruá Pará, que reúne diversos ritmos e manifestações culturais do Estado, e foi convidada para participar do filme Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, protagonizado pela atriz Camila Pitanga.
Sobre as mudanças que aconteceram em sua vida após a aposentadoria, Dona Onete diz que, apesar do sonho de ser cantora, não podia deixar o trabalho de lado. “Nessa luta minha da CUT [Central Única de Trabalhadores], de tudo, já diziam que eu era [cantora], mas eu dizia: ‘Eu não posso largar o meu emprego por uma coisa que eu não sei o que vai acontecer. Deixa eu me aposentar'. ‘Ah, mas quando tu te aposentar já vais estar velha’. Mas não interessa. Eu vou, pelo menos, escrever alguma coisa. Mas eu me aposentei e ainda passei uns três anos dando música para outras pessoas gravarem. De repente, que você já conhece a história, fui dar uma canja num carimbó, já entrei numa banda de rock e, dessa banda de rock, já fui pro filme da Camila Pitanga, cantar no filme de lá, de Santarém”, explica.
A partir daí, Dona Onete passou a se apresentar em outros Estados brasileiros e, também, em festivais internacionais, como o Festival Womex, na Finlândia, o Muziekpublique, em Bruxelas, além dos shows na Inglaterra, Alemanha, Portugal, entre outros países.
Com quatro álbuns solo e muitas lendas e histórias para contar, Dona Onete é hoje uma das maiores difusoras da cultura paraense no Brasil e no exterior. Quando questionada sobre qual Dona Onete ela gosta de mostrar ao público, a cantora diz que se vê como “uma cabocla paraense”. “Trouxe como objetivo, depois de me aposentar como professora, ter uma oportunidade de falar sobre o nosso interior, sobre as nossas coisas paraenses, coisas de lá que muita gente deixava de lado, passava por cima, pisava e não sabia que era cultura. E eu achei a cultura e trouxe: virou flor, hoje em dia está florido tudo”, brinca.
Carimbó Chamegado
O carimbó, expressão cultural do Norte do país, surgiu no Pará por volta do século XVII, a partir das danças e costumes indígenas. O nome vem do instrumento musical “curimbó”, tambor utilizado em manifestações artísticas e religiosas.
Para Dona Onete, o ritmo, em consonância com a dança, faz do carimbó um “chamego”, uma forma de envolver as pessoas. “O carimbó é uma saia também em movimento, vai em cima, vai embaixo, suspende a saia, dá um nó assim. Porque é uma dança muito faceira. O homem vem, eu comparo o balanço de uma roseira com uma flor e um beija-flor querendo. Vai, chega lá e volta! Assim que é a dança do carimbó: o balanço da roseira e um beija-flor querendo, porque você vai aqui, vai ali, cercando, é um tipo de proteção. É muito bonito”, diz emocionada.
Algumas de suas músicas refletem bem esse jeito chamegado de cantar o carimbó. Um de seus maiores sucessos, Jamburana, de seu primeiro álbum solo, Feitiço Cabloco, lançado em 2013, traz essa sensualidade descrita por Dona Onete associada à riqueza da culinária paraense. O jambu, planta típica do Pará que causa dormência na língua, é utilizado, segundo a cantora, em pratos como o pato no tucupi, o tacacá, o arroz paraense, a caldeirada no Pará e, até mesmo, o vatapá e o caruru, pratos típicos da culinária baiana que, na versão paraense, são “enfeitados” com jambu. Contudo, para Dona Onete, o jambu também faz “tremer”, vem descendo, vem subindo, “chega até o céu da boca” e “a boca fica muito louca”.
Além da exposição
A Ocupação no Itaú Cultural contou com duas apresentações de Dona Onete (16 e 17 de março, com ingressos esgotados), e ainda com a participação da cantora e compositora paraense Aíla, nesse sábado e hoje (18 e 19 de março).
A cantora foi a primeira a fazer parceria com Dona Onete. Ela conta que a conheceu em 2009, ensaiando em um estúdio no comércio de Belém. “Uma muvuca cheia de gente, Dona Onete estava lá ensaiando com um grupo na época, Rádio Cipó, meio alternativo, roqueiro. Achei curioso uma senhora de 70 anos ensaiando, cheio de meninos jovens. Achei ela muito aberta e ela me convidou para ir na casa dela, ouvir umas canções que ela tinha escrito. E tinha muitas, sei lá, 300, algumas inacabadas. E eu escolhi uma que se chamava Proposta Indecente. Ela disse: ‘Mas tu vai gravar essa música, será? O que vão achar de uma senhora de 70 anos escrevendo isso?’ Falei: ‘Ah, a senhora é isso, uma mulher sensual, forte, linda, eu vou gravar essa”, enfatiza.
Aíla conta que chamou Dona Onete para cantar em seu primeiro disco e que, a partir daí, o trabalho de ambas passou a ser reconhecido. “A gente fez um clipe que viralizou, tem muitas visualizações de forma orgânica, muito legal para o meu trabalho e para o dela. Muito orgulho de ter sido essa primeira artista que lançou algo dela, gravou com ela. E acho que isso abriu caminho para muitas outras pessoas conhecerem Onete”, explica.
Diversos outros jovens artistas, do samba ao rap, fizeram parceria com a artista. Entre eles, estão nomes como Gaby Amarantos, Jaloo, BNegão e Emicida. Para Aíla, Dona Onete “é uma figura com 80 e tantos anos que está disposta a ouvir o outro, de outras gerações, a trocar, compor junto, é uma figura cheia de vitalidade. Acho que isso leva ela além. Então, com certeza, isso faz com que as pessoas se conectem mais facilmente com ela, essa abertura toda”, finaliza.
Para Dona Onete, essa abertura ao diálogo é uma forma de abraçar o outro por meio de sua música: “Eu não sei se é meu jeito de receber, de falar, de cantar, de alegrar as pessoas, porque a gente está precisando muito disso. Depois que viemos dessa, eu trago na minha música agora: eu quero é sentir a pulsação num abraço. Num abraço apertado, o coração disparado”.
(Fonte: Agência Brasil)