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Vítor Gonçalves Neto e suas andanças crônicas*

Apresentação ao livro “Crônicas das Andanças”, incluindo o mais completo roteiro bibliográfico desse escritor caxiense nascido no Piauí. Texto revisto, atualizado e ampliado em 23/11/2020; escrito e publicado originalmente em 1995.

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No “roteiro” biográfico-sentimental que escrevi em 1989, e que se inclui neste livro com algumas alterações e atualizações, digo que o terceiro livro que Vítor Gonçalves Neto pretendia publicar tinha o título de “Sem Compromisso –100 Crônicas”.

Contei mal. Vamos começar do começo: os registros do próprio Vítor, cruzados com os de outras testemunhas, revelam que o primeiro livro que ele escreveu foi “Santa Luzia dos Cajueiros”, classificado como romance por Hindemburgo Dobal, embora o próprio autor o tivesse como novela. Romance ou novela, o texto foi escrito em algum espaço de tempo de 1943 a 1950, período que vai da época dos incêndios criminosos dos casebres de palha de Teresina, os quais deram “munição” para o texto, até o ano anterior à publicação do conto “Fogo”, em 1951, numa antologia baiana de contos regionais.

O conto “Fogo” foi escrito na Bahia e era, segundo seu autor, uma versão “espremida” (mais ou menos 12 páginas) de “Santa Luzia dos Cajueiros”, que tinha 25 capítulos (Santa Luzia era uma das ruas do Cajueiros, à época “o bairro mais sujo de Teresina, refugo de mulheres perdidas, homens embriagados, crianças que não queriam estudar”, também ameaçado pelos incêndios anônimos). Os originais do livro, conforme depoimento do autor, “ficaram perdidos em meio à biblioteca do poeta conterrâneo Martins Napoleão”. O conto “Fogo” foi republicado, como “plaquette”, em 1988, pela Editora Corisco, de Teresina.

Registre-se que, como subproduto do conto “Fogo”, Vítor escreveu, ainda na década de 50, um roteiro para uma companhia carioca de cinema. As autoridades de então impediram o filme de ser rodado.

Vítor Gonçalves escreveu também “Paissandu, nº 9” e “Caminho das Águas Turvas”, romances inacabados e, claro, não publicados. Rua Paissandu, número 9, era o endereço de uma “casa de mulheres perdidas na zona grã-fina”, como está no conto “Fogo”. Por sua vez, “Caminho das Águas Turvas” referia-se às águas barracentas do Rio Parnaíba, o caminho d’água dos barqueiros.

Em março de 1957, efetivamente, foi impresso o primeiro livro: o “clássico” "Conversa Tão Somente". Feito na Tipografia São José, em São Luís, o selo editorial, entretanto, era de Teresina (Caderno de Letras Meridiano). O livro reúne trinta crônicas, escritas de 1953 a 1957. A primeira parte é dedicada ao folclore. São cinco crônicas: uma sobre bumba-boi, três sobre “assombrações” e outra sobre brincadeiras de criança. Todos os textos são datados de 1953 e foram escritos em quatro diferentes localidades do Rio de Janeiro (Vila Isabel, Duque de Caxias, Nilópolis e Laranjeiras).

A segunda parte tem vinte crônicas e foi escrita em São Luís, de 1955 a 1957. É um registro das lembranças e elaborações do cronista acerca de cidades, viagens, mulheres, animais, coisas, ambientes, impressões. As últimas cinco crônicas formam “O livro de Edna”, dedicado naturalmente à futura mulher. "Conversa Tão Somente" saiu com sobrecapa, cuja “orelha” é assinada por Bandeira Tribuzi, nome de respeito e referência na história literária recente do Maranhão. A apresentação é do já citado Hindemburgo Dobal.

Em "Conversa Tão Somente" Vítor já manifestava sua intenção de publicar um “livro de memórias”, aproveitando o título de uma das crônicas: “Ponta de Calçada”, referência à Rua Pacatuba, uma antiga “rua de subúrbio da capital piauiense” que “daria um romance”.

Em agosto de 1963 apareceu o segundo livro. Diferentemente do anterior (que fora impresso no Maranhão, mas com edição do Piauí), este foi impresso no Piauí (Imprensa Oficial, Teresina) para as Edições Aldeias Altas, de Caxias, Maranhão. Era o "Roteiro das 7 Cidades" (assim mesmo, com o numeral sete), romance de 179 páginas ambientado no conhecido sítio de formações rochosas dos municípios piauienses de Piracuruca e Brasileira (este, criado em 1993). Ilustra a obra uma dúzia de fotografias e desenhos copiados dos originais de Ludwig Schwennhagen, historiador e filólogo austríaco que defendia terem sido os fenícios os primeiros habitantes do Piauí.

O livro foi escrito em 1954, no Piauí, e os originais com preciosas anotações/alterações à mão foram “esquecidos num banco da Praça Benedito Leite”, em São Luís, na noite de 12 de junho de 1955, um domingo. Oito anos depois, sem que o texto anotado fosse devolvido, Vítor Gonçalves publicou a cópia "in natura" que restava em seu poder. O livro não traz prefácio; apenas o nome do autor do desenho da capa e das três pranchas, Murilo Couto. Esqueceram-se de registrar o autor das fotos (teria sido o próprio Vítor?).

No verso da falsa folha de rosto do "Roteiro das 7 Cidades", a relação de obras do autor traz, como o próximo livro “a sair”, "Gentes e Chãos Eternos", com certeza outro livro de crônicas.

Portanto, desde 1963, Vítor Gonçalves Neto alimentava a ideia (porque o material, os textos, ele já os tinha) de publicar um novo livro. Desse modo, quando em 1977 ou 1978 eu o acompanhei até o Sioge (o Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado [do Maranhão]) e testemunhei sua conversa com o diretor Jomar Moraes para publicação de um novo livro de crônicas (ao qual já dera o título: "Sem Compromisso – 100 Crônicas"), essa obra seria, pelo menos, a de número nove, caso as intenções do autor se realizassem e as condições permitissem.

A lista ficaria assim:

1) o romance (ou novela) "Santa Luzia dos Cajueiros" (escrito de 1943 a 1950; não publicado);

2) o conto “Fogo” (escrito na Bahia e publicado originalmente em 1951, republicado em outras antologias e, isoladamente, em 1988; republicado como “4ª edição” em 2002, número 4 da Coleção Contar, da Livraria e editora Corisco Ltda., de Teresina (PI). O “copyright” dessa edição está em nome do filho Jorge Gonçalves);

3) o roteiro para cinema baseado no conto “Fogo”;

4) e 5) os romances inacabados, provavelmente perdidos, "Paissandu, nº 9" e "Caminho das Águas Turvas", ambos de antes de 1957;

6) o livro de crônicas "Conversa Tão Somente", publicado em 1957;

7) o romance "Roteiro das 7 Cidades", publicado em 1963, dedicado a Luís da Câmara Cascudo, que Vítor chama de “o mestre”, a Odylo Costa, filho (“o amigo”) e “para Rachel de Queiroz, que – quando eu [Vítor] tinha 5 anos – foi minha primeira namorada”). “Roteiro das 7 Cidades” saiu também, como “3ª edição”, em 2015, número 47 da Coleção Centenário, da Academia Piauiense de Letras;

8) o livro (supostamente de crônicas) "Gentes e Chãos Eternos", anunciado em 1963; e

9) "Sem Compromisso – 100 Crônicas", esperado para 1978. Acerca deste, testemunhei também o Vítor passando as crônicas a limpo, rebatendo-as nas tiras de papel-jornal que ele usava como padrão para laudas do semanário que ele dirigia, "O Pioneiro". Não estarei enganado se disser que vi o maço de papéis com a centena de crônicas, datilografadas em vermelho.

Em 1995 foi publicado o décimo livro de Vítor Gonçalves Neto, edição “post-mortem” realizada por amigos de Caxias e Imperatriz: "Crônica das Andanças, dos Bichos, das Fêmeas e Outras Coisas Que Tais". O título do livro vem do nome da coluna, com pequena redução: no original, o nome da coluna tinha mais palavras, como “dos vivos e dos mortos”.

É importante ressaltar que Vítor já divulgara sua intenção de publicar um livro que reunisse crônicas dessa coluna, tanto que chegava a anotar ao final delas: “Reproduzida após revisão e seleção para livro em preparo” (sublinha nossa). Textos com essa observação podem ser vistos em edições de “O Pioneiro” dos primeiros meses de 1989. Do mesmo modo, conforme já anotei aqui, Vítor Gonçalves pretendera publicar, uma década antes, um livro de crônicas da mesma coluna, à época intitulada “Sem compromisso”.

"Crônica das Andanças (...)" reúne 25 pequenos textos de grande intensidade poética e imaginativa.

Embora modesta em forma, a obra é produto da consciência, da estima e dos esforços muitos de muitas pessoas: os poetas Renato Menezes e Jorge Bastiani, que fizeram a seleção dos textos; a família Gonçalves, na pessoa de dona Edna Silva Gonçalves, que deu o “de acordo” para a publicação; os autores dos textos que engrossam o livro e ratificam seu respeito, admiração e saudades do Vítor; novamente Renato Menezes, pela Editora Caburé (Caxias) e Adalberto Franklin (um piauiense maranhense que nem o Vítor) e equipe da sua Ética Editora, pelo empenho e especial carinho com que cuidaram da edição. À distância, mas chegando junto por intermédio dos onipotentes e onipresentes recursos da Informática e das teletecnologias, auxiliei na coordenação e formatação da edição. E assim este livro saiu em exatas duas semanas.

Em 2012, é publicado “Simplesmente Crônicas”, livro de Vítor Gonçalves Neto, com seleção de textos e organização de Quincas Vilaneto (Joaquim Vilanova Assunção Neto), escritor e pesquisador caxiense, e prefácio de Edmilson Sanches. A edição teve o apoio da Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FAPEAD), criada em 2003 e vinculada à Universidade Estadual do Maranhão.

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A obra publicada nunca coincide com a obra produzida. Esta será sempre maior; a outra nunca necessariamente a melhor.

Muita coisa do Vítor e sobre o Vítor ainda está para ser feita. Precisa ser feita. Tem de ser feita. Vai ser feita.

Sua obra em verso (afora a poesia da sua prosa).

Os trabalhos feitos no Rio, em Salvador e São Luís, para citar só as cidades de primeira lembrança.

Seu material iconográfico.

Os livros que recebeu, autografados e dedicados.

Levantamento de seus personagens.

Mapeamento de localidades.

Indexação de assuntos.

Frequência vocabular.

Suas relações com grandes nomes do jornalismo, da literatura e da cultura regional e nacional.

... É um mundo de coisas que tem para ser recuperado, (re)trabalhado, divulgado, discutido. Afinal, Vítor Gonçalves começou nas redações aos dez anos de idade. Quase 55 anos de batente, vendo e escrevendo. Ouvindo e indo.

Com certeza os milhares de textos (artigos, crônicas, reportagens, poemas) de Vítor Gonçalves Neto no Piauí, Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro etc. formariam dezenas de livros, caso autoridades públicas e empresários financiassem a pesquisa, organização e publicação desse extenso material. Mas isto, e esperando saudável desmentido, só mesmo no mundo da imaginação...

O lançamento de "Crônicas das Andanças (...)" foi mais que uma homenagem ao Vítor que renascia setentão naquele 4 de novembro de 1995: foi também um exemplo, um estímulo e um alerta para as gerações caxienses de hoje e dos dias que hão de vir: não devemos esquecer as referências básicas da História e da Cultura de nossa comunidade. E Vítor Gonçalves Neto é uma dessas referências.

Talvez Vítor nem gostasse de tanto bafafá e ti-ti-ti. Porém chega um tempo em que não podemos fazer nossos gostos: é quando deixamos de ser realidade semovente e nos tornamos saudade permanente. As situações se invertem. Por exemplo, como jornalista e escritor, Vítor não podia escrever sem história.

Agora, não se pode escrever a História sem ele.

EDMILSON SANCHES

Ilustrações:

Capa dos livros "Crônica das Andanças", de 1995, “Conversa Tão Somente” (1957), “Roteiro das 7 Cidades” (1963), “Fogo”, 4ª edição, 2002), “Simplesmente Crônicas” (2012) e revista “Verbo”, da Academia Imperatrizense de Letras, número 17, março de 2005. O livro "post-mortem" “Crônicas das Andanças” traz na capa rara foto de Vítor Gonçalves Neto. A foto foi feita por Edmilson Sanches, com Vítor andando na larga calçada em frente à Associação Comercial, em Caxias, na década de 1980, durante visita do jornalista gaúcho Mário Gusmão, que era presidente da Associação Brasileira de Jornais do Interior (ABRAJORI).