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Em cismar, sozinho, à noite*

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“[...] ele cismou com isso aí.

// [...] ele cismou.

Quando ele cisma, é uma tragédia".

(AÍRTON VIEIRA, desembargador, juiz instrutor,  assessor do ministro ALEXANDRE DE MORAES / STF)

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Por essas coincidências que só (re)afirmam a crendice, o dia 13  – e, mais ainda, 13 de agosto --, para um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, passa a ser um dia infeliz. Um dia, como qualificavam os latinos, “nigro notanda lapillo”, ou seja, um dia que deve ser marcado com uma pedra preta.

Mas a vida é como os registros contábeis escriturados com as chamadas partidas dobradas: se há um lançamento no débito, há que haver outro no crédito. Desse modo, a uma coisa ruim corresponde uma boa: para algumas pessoas, para diversas pessoas, para muitas pessoas, o 13 de agosto de 2024 será um dia feliz, ou, como diziam os latinos, um dia “albo notanda lapillo”, que deve ser marcado com uma pedra branca. O enorme escritor e dramaturgo francês Honoré de Balzac (1799-1850) utiliza esta segunda expressão no original latino em “Modesta Mignon”, romance que completa, em 2024, exatos 180 anos de publicação e é parte das “Cenas da Vida Privada” da monumental “A Comédia Humana”, constituída de mais de 90 livros.

Mas, tornando ao 13 de agosto, diz a antiga sabedoria popular que desgraça pouca é bobagem e que, às vezes, além da queda vem o coice –  vale dizer, o 13 de agosto apenas abriu as portas do inferno astral que, ao que tudo indica, se reserva para um ministro da Alta Corte Constitucional do Brasil.

A primeira de várias, senão muitas, reportagens que, em série, foi publicada no 13 de agosto pelo jornal paulista “Folha de S. Paulo” já foi suficiente, ela sozinha, para levar o próprio jornal e um grandíssimo número de outros veículos de Imprensa, entidades, políticos e as denominadas mídias sociais digitais a avaliarem como “fora do rito”, ilegais, criminosos etc. etc. os atos, atitudes, manifestações e ordens ou determinações do ministro Alexandre de Moraes e o cumprimento das ordens, comentários dos assessores que materializavam as ordens, enfim, os feitos e desfeitos e até os (documentos) refeitos por esses subordinados, pois senão o ministro poderia ele mesmo produzir os textos e/ou documentos (claro que isso dificilmente ocorreria, haja vista a decantada estrutura de recursos humanos e logísticos que se diz terem os senhores ministros e mais a relação de subordinação e dependências dos subordinados).

Evidentemente, para “compensar” as investidas dos muuuuitos que querem a cabeça do ministro, está comparecendo um razoável número de pessoas físicas e jurídicas que afirmam a inocência do togado e a regularidade de seus atos – incluindo os dos assessores também, é claro.

Já dei aulas de Jornalismo em Universidade pública  – disciplinas “Assessoria de Imprensa” e “Entrevista, Pesquisa e Reportagem”. Tanto pelo mister desse magistério quanto pelos “mistérios” do ofício de (bem) informar, posso assegurar que vem coisa no mínimo “mais pesada” nos próximos dias em desfavor do ministro. As reações, notas, palavras em seu favor logo após a primeira reportagem são apressadas, mas de todo modo natural, próprias do calor do momento. O também jurista Aulus Gellius, que viveu no segundo século depois de Cristo, escreveu em suas “Noites Áticas” que “a verdade é filha do tempo” (“Veritas temporis filia”).

Ora, diz e repete a Imprensa que o material que recebeu, de modo lícito, ocupa mais de 6 (seis) gigabytes de memória. São mensagens por escrito e por áudio, além de arquivos de imagens e de vídeos, tudo trocado via WhatsApp, este aplicativo multiplataforma que, neste ano em que debuta (completa 15 anos), já fez muito bem aos seus criadores e alguns males para muitos de seus confiados usuários... O material nas mãos dos jornalistas da “Folha de S. Paulo” diz respeito a apenas 10 (dez) meses, os cinco últimos de 2022 e os cinco primeiros do ano seguinte, portanto, de agosto de 2022, após ter iniciada a campanha eleitoral e durante toda ela, até maio de 2023, já no novo Governo  eleito e empossado.

Mas, sobretudo para o ministro e para os que correram em sua defesa, cabe perguntar: Alguém acha que os jornalistas e o jornal publicariam o pior desses seis gigabytes logo no primeiro dia? Claro que não! Isso não é da lógica humana nem muito menos do ofício jornalístico. A conta-gotas, homeopaticamente, vão-se depositando palavras, imagens e sons (áudios das conversas) no papel do jornal, no e-mundo digital e tal e tal. Aí, feitas as primeiras publicações, jornal e jornalistas esperam as reações, sobretudo as que tentam negar ou justificar os atos do ministro e seus assessores. Avaliadas, pesadas e ponderadas essas reações, o jornal e seus jornalistas produzem e lançam mais algumas “bombas”, isto é, um conjunto de informações que, estas sim, reforçam a publicação anterior e até agravam a situação dos personagens das matérias, as quais, para piorar ainda mais, fragilizam e/ou invalidam as defesas adredemente feitas. É tortura chinesa (dizem), em que pingos d’água caem por horas ou dias sobre a testa ou na moleira de indivíduos amarrados. Ou pode ser a “gota tártara”, tortura inventada pelos russos, onde a pessoa nua sofre pelo menos 40 horas com um fio d’água –- geladíssima!... –  lhe infernizando o corpo e a mente.

Dá para imaginar o que ainda vem por aí? Serão noites insones e dias trombones...

Tentemos ver o que pode vir. Os próprios grupos de comunicação  – Folha, Globo... – reafirmam nas matérias que, repita-se, “são mais de 6 gigabytes” de gravações, arquivos, o que seja.

Para você ter uma ideia, vamos falar um pouco sobre o que é a capacidade de armazenamento de informações ou processamentos de dados em um computador, “tablet”, celular, “pen-drive” etc. Assim como o quilograma é para massa (peso), o litro para capacidade (líquidos e gases), o metro para comprimento, o “byte” (baite) é a medida para a capacidade de armazenamento de dados. O byte é formado por uma unidade menor, chamada “bit”.

A palavra “byte” é originada do inglês “bite” (mordida). A palavra “bit” é formada pela união das duas primeiras letras de “binary” com a última de “digit” – é “binary digit” (dígito binário) porque, como se sabe, as informações no computador são representadas por dois algarismos, o 0 [zero] e o 1 [um]. São necessários oito “bits” para formar um “byte” e cada letra ou caractere que você está vendo aqui corresponde a um “byte”. Assim, como se fora o “Bolero” de Ravel e seu crescendo musical progressivo, a capacidade de armazenamento de dados também vai crescendo: da menor unidade, o “bit”, vai-se ao “byte”; deste ao “kilobyte” (ou mil “bytes”), ao “megabyte” (mil “kilobytes”), chega-se ao “gigabyte” (mil “megabytes”) e, também mil vezes mais, o “terabyte” – e já existem o “petabyte”, o “exabyte”, o “zettabyte” e o “yottabyte”, este por enquanto o de maior capacidade, equivalente 1 (um) quatrilhão de “megabytes” ou um trilhão de “gigabytes”.

Vamos voltar aos “mais de seis ‘gigabytes’” de mensagens e outros arquivos em só dez meses de conversas e trocas de postagens entre o ministro e seus subordinados, em um grupo de WhatsApp denominado “Inquéritos”. A Ciência (da Computação) diz que CADA “GIGABYTE” corresponde a 6,5 milhões de páginas de documentos. Por escrito: 1 “gigabyte” armazena SEIS MILHÕES E QUINHENTAS MIL páginas cheinhas de letras e/ou imagens. Como são “MAIS DE SEIS ‘GIGABYTES’”, a multiplicação é simples: 6,5 milhões X 6 “gigabytes” = 39 (TRINTA E NOVE) MILHÕES DE PÁGINAS. E ainda tem o sobejo, o resto, pois são “MAIS” de seis “gigabytes”. Ou seja: o jornal “Folha de S. Paulo” e seus dois jornalistas estão com, potencialmente, QUARENTA MILHÕES DE PÁGINAS de documentos (e seus conteúdos) para serem vazados sob forma de reportagens, todo dia, sem falar nas reações e outras repercussões e o que de fatos novos podem ocorrer, em razão da publicação em série. Por exemplo: a vida, a profissão, o passado, as amizades sensíveis, as sentenças que prolatou (para quem foi juiz de Direito), os textos que publicou, os lugares que visitou, pessoas que ofendeu ou fisicamente maltratou, eventuais movimentações financeiras, os bens (patrimônio) que acumulou, os vícios a que se entregou, e uma lista (grande) de “otras cositas más” poderão – e serão – pesquisadas, investigadas, na surdina, em segredo, com discrição... e, localizado algo jornalisticamente interessante, une-se ao material e reúne-se o conjunto de evidências, provas etc. para sustentar a fidedignidade e profissionalismo do trabalho da Imprensa e a incolumidade dos profissionais envolvidos, em especial a liberdade, a honra e o patrimônio.

Volte-se a repetir: ainda que também contenha imagens estáticas, imagens em movimento (vídeos), documentos, áudios, além das mensagens escritas, seis “gigabytes” é muita coisa. Evidentemente, esses dados foram recebidos já há algum tempo. Tempo suficiente para leitura, corte e costura dos dados, pesquisas, entrevistas, reuniões com o setor Jurídico e a Alta Direção do jornal, sopesamento das consequências (inclusive econômicas) para o veículo de Imprensa...

É claro que os seis “gigabytes” de informações não foram recebido dia 12 ou dia 10 ou neste mês de agosto... Uma montanha – na verdade, uma cordilheira – de dados desses não se formou nem foi escalada agora; não com a hipersensibilidade de que essas informações potencial e explicitamente se revestem, com as implicações e implicâncias políticas, jurídicas, profissionais e até humanas que ela suscita e já está suscitando.

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Falta explicar a razão do título – “EM CISMAR, SOZINHO, À NOITE”.

Há 181 anos, precisamente no mês de julho de 1843, o advogado, cientista e escritor Antônio Gonçalves Dias, meu conterrâneo de Caxias (MA), escreveu o poema que é quase um segundo hino nacional, a “Canção do Exílio”. Não há quem não lhe saibam os versos iniciais: “Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiá”. Seis versos depois destes, está a linha inicial da terceira estrofe: “Em cismar, sozinho, à noite”. (Este mesmo verso retorna na estrofe seguinte da “Canção”).

O principal assessor do ministro Alexandre de Moraes, também juiz e desembargador, na boquirrotice das conversas e mensagens via WhatsApp, disse que o ministro estava “esses [aqueles] dias sem sessão”; assim, estava “com tempo para ficar procurando”. Ele fazia isso inclusive à noite, em casa, já que estava em recesso (de férias) do trabalho. Assim, haja enviar mensagens, arquivos para a assessoria, com instruções de fazer  – e fazer logo, e fazer bem feito. Ou, como falou o assessor: ”Quem mandou isso aí, exatamente agora, foi o ministro e mandou dizendo: Vocês querem que eu faça o laudo? Ele tá assim, ele cismou com isso aí”.

Isso mesmo: “[...] ele cismou com isso aí. // [...] ele cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia."

A palavra “cisma” é bissexual, assume dois gêneros. Como substantivo masculino, denomina a separação de um grupo de pessoas de uma coletividade. Também significa desacordo, dissidência de opiniões.

Como palavra feminina, “cisma” é velha conhecida nossa e ela se torna talvez o único  (para utilizar a terminologia do assessor ministerial) “mínimo múltiplo comum” com o Sr. Alexandre de Moraes, que sabe ficar cismado que nem gente comum. Desde o tempo das aulas de Matemática do Ensino Fundamental (ou foi do Médio?) que eu não mais tinha ouvido falar em Mínimo Múltiplo Comum (ou MMC) e Máximo Divisor Comum (ou MDC). Como já disse: “cisma” não é só coisa de gente de toga, não.

Cisma – está no “Houaiss” – é mania; produto da fantasia, da utopia. Em sua rica semântica, cisma é teima, é capricho, é ideia fixa, é hostilidade um tanto gratuita.

Desde que foi registrada a primeira vez em Língua Portuguesa, há 631 anos (1393), a palavra “cisma” não imaginava que estaria, em suas flexões verbais, três vezes na boca de gente importante para qualificar (!) gente mais importante ainda...

Isso é o que dá cismar sozinho e à noite.

Serve para fazer grandes versos.

Serve para dizer coisas pequenas...

* EDMILSON SANCHES