O BLOG DO PAUTAR mostrando aos leitores – bons leitores – textos literários que valorizam a nossa literatura maranhense... Aproveitem... Boa leitura!
(Um passeio memorial, rápido, pela Literatura, pelas histórias em quadrinhos, pelos cordéis, pelo Cinema, pela Música, pela vida...)
(Prefácio ao livro “Assim Tombou Ricardo Constâncio”,
de João Pereira Neto, 2019, inédito.)
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Era boquinha da noite. Conta-se que o homenzarrão chegou ao povoado do qual se dizia ser terra de gente valente.
O homão não viu ninguém nas ruas. Aparece um menino e ele, rude, pergunta: “– Cadê os homens daqui?” O garoto aponta um bar logo adiante.
Foi entrando e já foi insultando: “– Este lugar não tem homem, não? Cadê os cabras valentes daqui?” E foi enticando os presentes. Enfiava o dedo nos peitos de cada um e questionava: “– É você o valentão daqui?”
Quando o indicador em riste do valentão foi se chegando ao peito de um baixinho que pitava seu fuminho tranquilamente, o homenzarrão finalmente ouviu uma resposta: “– Seu moço, neste lugar, num tem nem um valentão, não; porque os que chegam aqui... nós mata!”
O grandão recém-chegado ainda teve tempo de revirar os olhos, tentando aparar com as mãos o sangue e os intestinos que, aos borbotões, em evisceração, começavam a sair de seu bucho, aberto de cima a baixo e de lado a lado por uma afiadíssima faca peixeira que, com modos de prestidigitador, o baixinho pitador manuseara, cortando fundamente em cruz a barriga do malsinado valentão, que, ali mesmo, tombou, mortinho da silva...
O baixinho João da Cruz não tinha esse nome à toa...
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Que eu me lembre, desde a minha infância, convivo com valentões. Sequer imaginava que, no completar de mais uma década de vida, com este pequeno grande livro – ”Assim Tombou Ricardo Constâncio”, de João Pereira Neto –, eu viesse a me apegar com mais um. E dos bons.
Explico: Menino curioso que sempre fui, eu ouvia histórias de valentões nas conversas na entrada da noite, quando os vizinhos iam falar seus casos, coisas e “causos” em frente lá de casa, sentados em seus tamboretes, mochos, cadeiras de macarrão, cadeiras preguiçosas... Para iluminar a noite e as conversas, em uma época sem energia elétrica para todos, um ou outro mais abastado trazia seu Petromax, alguns remediados traziam candeeiros e os mais humildes, as lamparinas de morrão. E haja aparecerem histórias e “causos” de valentões, arruaceiros e brutamontes!... A noite de animadas conversas só terminava tarde – antes, só se o tempo recomendasse ou se a rasga-mortalha teimasse chirriar por sobre ali, emitindo prenúncios de mau agouro.
Do convívio com valentões das conversas, passei para os valentes dos livros. Os primeiros acho que os conheci por volta dos seis anos de idade, quando eu, sentado no chão de barro batido da casa, ficava a ouvir Seu Miguel, um paraplégico ledor, morador do mesmo lado de rua, que lia para mim a “História de Carlos Magno e os Doze Pares de França”, que, depois, ele me emprestou e que, adulto, consegui um exemplar semelhante da obra. Até hoje, tenho de memória o nome dos valentes Roldão (ou Rolando) e Oliveiros e, também, Galalão (ou Ganelão), entre outros, e o adversário gigante Ferrabraz, todos com suas espadas com nome: “Joiosa”, espada do Imperador Carlos Magno; “Durindana”, de Roldão; “Alta Clara”, de Oliveiros; “Plotança”, “Batizo” e “Braba”, todas de Ferrabraz. (Além dessas armas do período carolíngio (742-814), como não se lembrar das espadas arturianas, da Távola Redonda? A “Excalibur”, do Rei Artur, a “Cortana”, do cavaleiro Tristão...).
Aos valentões de conversas e aos valentes de livros juntei os da Cultura Popular. Foram estes e outros valentes e valentões que me acompanharam, bem retratados nos muitos “romances” que eu lia e, até hoje, leio e releio. “Romance” era o nome que se dava, à época, aos livretos de literatura de cordel. Nestes, eram frequentes os valentes e valentões, reais e imaginários, que, igualmente, viviam ou eram colocados em relatos verdadeiros ou aventuras fictícias. Entre esses valentes e valentões, além de príncipes em busca de suas princesas, de Juvenal e seu dragão, havia personagens mais chãos, mais telúricos, como Lampião; ou Antônio Cobra Choca e Zé Mendonça (o “Sertanejo Valente”), e Negrão do Paraná e João Balduíno (o “Seringueiro do Norte”), todos do cordelista Francisco Sales de Arêda; os ladinos e legendários Cancão de Fogo e Pedro Malasartes. A valentia de uns e a valentice de outros são sempre bem descritas pelos autores cordelistas. O citado Arêda descreve o valentão Negrão do Paraná:
“Quando chegava nas feiras
fazia o maior destroço
dava nuns matava outros
quebrava pernas e pescoço
o pobre que ele pegasse
quebrava osso por osso”.
Mas como toda chaleira tem sua tampa, havia o humilde e valente Seringueiro do Norte, de nome João Balduíno, na estrofe abaixo identificado como “rapaz”, que não tinha medo de foba e assim falou pro Negrão do Paraná na peleja:
“O rapaz disse está certo
você é duro eu sou duro
pegue arma se defenda
que também estou no apuro
pode furar se puder
que também vou vê se furo”.
Em outro folheto de cordel, e rejeitando a fama de valentices de um lugar, Cobra Choca diz a que veio:
“– Isto de fama é besteira
quem é bravo também morre!
Se o senhor quiser, eu vou
buscá-lo e ele não corre.
Caso ele com a negra
só Jesus Cristo o socorre”.
Cancão de Fogo, por exemplo, se não era um valentão, era um trapaceiro adorável, com laivos de valentia, como na hora da morte, segundo relata João Martins de Athayde, em seu cordel “A Vida de Cancão de Fogo e Seu Testamento”:
“Quando ele viu que morria
Chamou a mulher pra junto
e disse: ‘Minha mulher,
não precisa chorar muito:
não há tempo mais perdido
do que chorar por defunto’”.
O cordelista Severino Milanês descreve bem o seu “Valentão do Mundo”, o herói-título do folheto:
“Era forte e musculoso
tinha força igual a Sansão
domesticava pantera
pegava lobo de mão
matava cobra de murro
botava sela em leão”.
Desde criança, eu também via e ouvia valentes e valentões nas Histórias em quadrinhos (HQs) e na Música. No universo das HQs, lotado de mil e muitos heróis (e seus respectivos vilões...), cite-se apenas um, clássico, que traz a intrepidez no nome: o Príncipe Valente, do desenhista e roteirista canadense Hal Foster (1892-1982), que há mais de oitenta anos, desde 1937, povoa mentes crianças e adultas com suas aventuras.
Por seu lado, as músicas, em especial as brasileiras, me encantavam com os sons que delas saíam e com as letras, pelas imagens que com elas eu construía. Até hoje, recordo da letra e melodia de uma canção que, ainda, não consegui identificar: “Ele é o João Valentão, o bandidão”. Este João aqui tem nada a ver com a música-título “João Valentão”, que Dorival Caymmi passou nove anos pra compor e que, finalmente, gravou em 1953, merecedora de regravações inúmeras nas vozes de Ângela Maria, Elis Regina, Fagner, Ná Ozzetti, Oswaldo Montenegro... Ao descrever seu valentão, Caymmi dedica vinte dos vinte e seis versos para detalhar o ambiente/lugar encantador que é terra de João, personagem apresentado, ao término da música, como um “homem que nunca precisa dormir pra sonhar” – mas os primeiros seis versos revelam logo o “lado A” do moço:
“João Valentão é brigão
Pra dar bofetão
Não presta atenção
E nem pensa na vida
A todos João intimida
Faz coisas que até Deus duvida”
E faltaria espaço pra tantos valentes e valentões na Música, como nas composições de Luiz Gonzaga com Zé Dantas (o “sujeito valente e brigão” em “Forró de Caruaru”, de 1955) e com José Clementino, no icônico “Xote dos Cabeludos”, que seria uma “resposta” do Rei do Baião para outro “rei”, Roberto Carlos, que teria feito uma desfeita ao sanfoneiro pernambucano. Eis a descrição de um homem valente no xote:
“[...]
No sertão de cabra macho
Que brigou com Lampião
Brigou com Antônio Silvino
Que enfrenta um batalhão
Amansa burro brabo
Pega cobra com a mão
Trabalha sol a sol
De noite vai pro sermão
Rezar pra Padre Ciço
Falar com Frei Damião
[...]”.
No Cinema, nem se fale! É valente e valentão pra todo lado, na Terra e fora dela, com seus heróis e vilões armados com as próprias mãos (artes marciais e fortões tipo Hércules, Ursus e Maciste), com revólveres (faroeste), com armas de raios (ficção científica) etc. Conan, Dirty Harry, Braddock, Rambo, Shaft, enfim, do “A” do Aquaman ao “Z” do Zorro, é gente valente por toda a terra, água e ar...
Voltando à Literatura, fora das menções ao ciclo carolíngio e ao reino arturiano, Guimarães Rosa nos apresenta o valente Manuel Fulô e o valentão Targino, no conto “Corpo fechado”, de “Sagarana”. A “Bíblia” traz valentes aos milhares; a meu ver, um exemplo de valente é Davi e, de valentão, Golias.
As citações acima, nas diversas formas de expressão cultural (Literatura, Música, Cinema, Cultura Popular etc.), impõe que seja feita a distinção entre o que é “valente” e o que é “valentão”. Valente é uma virtude; valentão, uma deformação. Valente, em geral, é o que uma pessoa é; valentão, via de regra, é o que lhe atribuem ser. Para mim, valentão é arruaceiro, provocador, brigão, quando não um mero bravateiro, farsante, fanfarrão.
Esse “-ão” em “valentão” não é um intensificador da palavra; é um corrompedor dela, como em “respondão”.
Esse “-ão” em “valentão” não é um aumentativo; paradoxalmente, é um diminutivo, desqualificador, depreciativo.
Neste livro, a preponderância do termo “valentão” sobre “valente” e “valentia” é quase sempre um espelho, em que se vê, invertida, a imagem do outro. Por mais realística que seja, é reflexo e é o contrário da realidade.
Mulheres e homens que conheceram Ricardo Constâncio descrevem-no como “um moço muito bonito, educado e respeitador”. O próprio Ricardo Constâncio declara que “nunca havia nem sonhado de ser valentão ou coisa parecida”. O autor, de certa forma, ratifica isso quando, tanto no fim quanto na introdução, ressalva: “[...] não há relatos de que Ricardo tenha algum dia matado por encomenda ou para roubar” e “pensamos não ser justo pintar Ricardo Constâncio como um bandido celerado e de coração duro. Mas também não adianta querer retratá-lo como bonzinho. Nada de extremos”. João Pereira Neto sabe: “In medio virtus”. Nem ladino nem paladino.
Considerada essa distinção, apresenta-se, nesta obra, o moço Ricardo Gomes, o Ricardo Constâncio, pessoa histórica, isto é, verdadeira, real, que existiu mesmo. Casou-se, teve uma filha, tinha trabalho e endereço certos. João Pereira Neto o descreve com habilidade de escritor e leveza de um bom contador de “causo”. Nem parece que são rarefeitas as fontes para a pesquisa e construção de “Assim Tombou Ricardo Constâncio”. Talvez o mais que houvesse agora seja expletivo.
Com “Assim Tombou Ricardo Constâncio”, a boa Literatura maranhense e brasileira enriquece seu rol de personagens intrépidos, corajosos, valentes. João Pereira Neto, jovem, mas experiente juiz de Direito, está acostumado à dura prática diária da escrita – mas uma escrita que decide liberdade, patrimônio e valores intangíveis de pessoas, nos limites quase inflexíveis da Lei.
Sair desse cotidiano não é fácil, o que torna mais admirável esta pequena grande obra – no gênero, a primeira do autor. Entretanto, se, em seu mister, o juiz sentencia sobre Liberdade, Patrimônio e Valores, o escritor, em seu mistério, não é diferente: o personagem Ricardo Constâncio luta por liberdade legal, ao querer ajustar contas com a Justiça, e defende o patrimônio, material e moral, seu e de outros.
A Literatura ganha um estilista, pesquisador e documentador/descrevedor de falas, ambientes, situações. Nem o incômodo de ombro seriamente dolorido, que o levou à terapia física e a esta terapia literária, minou-lhe o bom humor, o (re)lembrar-se de aspectos da vida que ele próprio, autor, viveu e que reviveu em uma e outra passagem deste seu primeiro filho literário.
Como não gostar dos gostosos achados e descrições dados aqui à leitura pelo autor? “Dia de feira era, quase sempre, dia de facadas [...]”. “Aqui se mata por devoção [...]”. “[...] a Justiça daquele tempo era cara, lenta e rara, sendo vantajosamente substituída pela sentença do trabuco, que era definitiva, não admitia recurso”. Lei mesmo? Só “o bacamarte, o cacete, a faca”, “sem receio das fraquezas dos juízes e das patifarias dos jurados, sempre escolhidos a dedo”.
Ao relatar a briga entre o valente Ricardo Constâncio e o valentão Negão do Sul, João Pereira Neto alia à competência descritiva um “humour” na medida: “Ricardo não perdeu tempo e deu uma forte bofetada em Negão, que caiu de queixo trancado por cima de uma mesa de tábua de bacuri. Nisso, aparece o pai de Negão, chamado Isidoro, que morava em Caxias, e entra na briga. // Isidoro estava portando um cacete de jucá, assado ao fogo, duro mais do que beirada de sino [...]”.
Que beleza o trazer-se para aqui essa riqueza de imagens e analogias do interiorzão maranhense!... Que autoridade a do escritor, ele próprio, menino, um (con)vivente dessas realidades da gostosa linguagem cabocla, interiorana, com um belo e delicioso repertório de comparações e paralelismos semânticos!...
“Assim Tombou Ricardo Constâncio” recupera uma história de vida (e morte), de – “O tempora! O mores!” – um tempo que se (es)vai, de “homens de gênio forte e desassombrada coragem”, de gente que ousava “comprar questão”, de um povo “façanhudo” que nem Ricardo Constâncio, que, valente, “não costumava comprar valentia, mas também não era homem de vender covardia”.
Se não é um libelo acusatório, este é também um livro denunciatório... pelo menos em relação às práticas e modos de ser de ontem (ontem?) da Justiça, da Polícia, da Política, vale dizer, do Estado – um Estado corrupto e corruptor, desservidor e prejudicador dos cidadãos. Veja-se a descrição forte, precisa, exata de João Pereira Neto...
... sobre a Polícia: “As delegacias, com raríssimas exceções, estavam entregues a indivíduos analfabetos, servindo de cegos instrumentos de obediência partidária, sob a influência nefasta de desabusados chefetes políticos e sem os livros exigidos para registro de ocorrências, queixas-crimes, licença etc.”.
E sobre os desvios da Política por desviados políticos: “[...] a Guarda Municipal, mantida pelas Prefeituras do interior, existente em diversos municípios do Estado, formava um quadro de política roceira, sendo constituída por homens a serviço particular do prefeito, do delegado e de outras autoridades, pessoas que nada mais eram do que rachadores de lenha, tiradores de palmito ou tratadores de animais e que, nas horas vagas, faziam a correição, matando nas ruas e fundos de quintais os animais de propriedade dos adversários políticos, quando não podiam, por outro meio, satisfazer o seu capricho partidário”.
João Pereira Neto é um desses escritores que faltavam. Desenvolve, com primor, uma técnica de períodos curtos: nos originais à minha frente, em mais de cento e oitenta parágrafos de seu texto (com linhas de, em média, oitenta caracteres com espaço) apenas nove parágrafos tinham mais de cinco linhas e nenhum chegou a dez linhas. Uma qualidade ou um estilo, ou os dois – sem qualquer contraindicação, em especial nestes tempos de preguiça de ler, de acomodação mental, de consumo imagético via “smartphones” (estes aparelhinhos que, em geral, têm mais “esperteza” e conteúdos que seu manipulador).
Como a previamente querer desencorajar louvores por ou para esta obra, o autor diz, em “ponto final”, que, apenas, contou o que ouviu contar – o que, assim, digo-o eu, tornaria a obra uma realização coletiva e o autor mero escrivão da frota (de gentes).
Nesta sua obra primogênita, João Pereira Neto afirma que não há “pretensão literária alguma” e não intenciona “obter rasgados elogios”. (Fazendo blague, no caso deste prefácio pelo menos, os elogios vão inteiros...).
Neste livro, portanto, uma boa história, escrita com excelência.
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Com valentia. Assim lutou, assim viveu e assim tombou Ricardo Constâncio.
Com mestria. Assim contou muito bem contada a história João Pereira Neto.
Parabéns, João Neto!
Bem-vindo ao clube.
* EDMILSON SANCHES